Se sabes o básico o risco é mínimo

Falando de uma paixão maior do que a própria vida… 

 

Se sabes o básico o risco é mínimo. A frase é de Todd Chesser que escrevia pontualmente na Surfer Magazine na década de 90, a mesma mítica revista que o considerou em 1995 o melhor surfista do mundo de fora do rankings mundiais.

 

Conheci Todd Chesser em Fernando Noronha, em março de 1995, numa surf trip com o meu amigo de infância, Ricardo Villas Boas. Foi uma viagem memorável onde tivemos uma semana a surfar Cacimba do Padre e Boldró no seu melhor, com tubos azuis cristalinos para os dois lados num épico swell de lua sem crowd.

 

Todd Chesser estava acompanhado do surfista profissional norte-americano Todd Miller e da sua namorada brasileira. Foi uma semana incrível e inesquecível, guardávamos as pranchas nos arbustos no cimo da praia depois de dias exaustivos de surf. Simpatizei logo com a sua personalidade, tímido com ar de malandro, muito afável e cheio de sentido de humor. Parecia mais um europeu do que americano na sua forma de ser e de estar.

 

Perguntei-lhe como encarava as ondas havaianas de forma tão destemida, ao qual ripostou de forma muito simples:

 

“Sempre que levamos um caldo numa onda gigante devemos encontrar algo agradável para nos lembrar, uma espécie de prazer dentro do sofrimento. Ajuda a controlar a ansiedade e reter mais oxigénio. Se estivermos calmos, quase em estado de prazer, poderemos abrir os olhos na turbulência da onda e ainda percepcionar a espuma branca e a espuma preta. Na espuma branca não há perigo, é apenas espuma que nos projeta para a superfície. Já a espuma negra é que nos tritura para o fundo do mar, é aí que está o perigo. Nesse momento só temos como alternativa sorrir.”

 

Acabou por morrer de forma, no mínimo, perversa no inverno havaiano de 1997. Nesse dia, Chesser tinha agendado uma representação no filme “In God's Hands” na ilha de Maui. Todd ia fazer uma cena em que morreria afogado a surfar, mas esta acabou por se tornar real. As ondas em Oahu estavam excelentes e este optou por ficar em casa a surfar com mais dois amigos em Alligator Rock, uma onda perto de Waimea que só dá quando o mar está acima dos 25 pés. Foi literalmente varrido por um set gigante no line up e acabou por morrer afogado.

 

Apesar de não ser claramente um caso único, a verdade é que não há assim tantos surfistas de ondas grandes a morrerem dentro d’água. Outros exemplos passam por Malik Joyeux, um dos melhores surfistas taitianos que surfava Teahupoo com grande à-vontade. Em Pipe, o “petit prince” teve o azar de levar com a prancha na cara e com o impacto ficou inconsciente acabando por morrer afogado.

 

Mark Foo é outro exemplo. Era uma celebridade dentro do surf, todos conheciam o seu lado ousado nas ondas grandes, nada modesto e descrevia-se a ele próprio como “a lenda viva do surf”. Na mesma linha de Laird Hamilton ou Garret McNamara procurava demonstrar a sua enorme audácia em frente das câmaras para que todos comprovassem os seus feitos. Acabou por morrer em Mavericks, cuja melhor descrição seja de Ben Marcus num excelente artigo publicado na Surfer Magazine: “Sombrio, isolado e malévolo.”

 

Nesse dia, Mavericks até estava “amigo”, tinha algumas ondas grandes, mas nada de impressionante. Mark Foo acabou por morrer numa onda célebre que foi fotografada de dois ângulos distintos. A onda era grande, mas nada assustadora. A teoria mais credível, sendo Mavericks um fundo de pedra, foi que o seu leash ficou preso nas pedras. Mike Parsons dá credibilidade a esta teoria, relatando que ao cair na onda seguinte sentiu tocar em algo estranho quando estava debaixo d’água, provavelmente o corpo de Foo.

 

De todas estas tragédias, a mais impressionante para mim foi a do jovem Donnie Solomon. Corria o ano de 1995 em vésperas de natal, quanso Donnie foi surfar o maior mar da sua vida em Waimea Bay. O mar estava gigante e a experiência de Donnie nestas condições não era muita. Apesar disso, fez um surf extraordinário, apanhou duas ondas acima dos 25 pés, mas a terceira onda viria a revelar-se trágica. Ele e Ross Clarke-Jones remaram, mas o vento offshore acabou por prender Donnie no lip, indo parar a uma zona de impacto crítica quando o resto do set ainda estava para entrar. Donnie tinha duas opções:, remava que nem um louco para o outside e com sorte conseguiria passar o set monstruoso que vinha a caminho ou ficava parado e levava com a onda seguinte do set (opção também nada agradável) que iria projetá-lo mais para o inside fugindo assim da zona de impacto mais crítica.

 

O jovem decidiu remar como um animal para o outside, mas sem sucesso, ficando no pior lugar possível. Donnie Solomon foi literalmente esmagado por ondas gigantes que não pararam de chegar à costa, uma maior que a outra. Numa delas Donnie foi projetado pelo lip antes de ser lançado com mais violência para o fundo do oceano. Com o impacto acabou por ficar inconsciente ou simplesmente despendeu demasiado tempo debaixo de água e não conseguiu resisitir. A onda que matou Donnie foi soberbamente surfada por um surfista local havaiano. Ironicamente, a glória de um surfista foi a desgraça de outro. 

 

Em miúdo nos anos 80 não me esqueço da misteriosa morte do “Bitoque” na praia de Carcavelos. Eu próprio estava na praia nesse dia, o mar estava mais torto do que grande e muito se especulou sobre as causas da sua morte. Para mim, enquanto puto, o que ficou foi o choque de ver um surfista desaparecer no mar. 

 

Peter Davi, Sion Milosky e Dickie Cross são outros dos heróis que perderam a vida e que merecem evidentemente o nosso respeito. Eddie Akau e Jay Moriarity não morreram a surfar, mas serão sempre símbolos especiais para a comunidade surfista, personalidades muito especiais e autênticos lobos das ondas grandes.

 

Olhando para estes exemplos acredito que os big wave riders pensem que a morte significa o fim de alguma coisa e não o fim de tudo, mas o que impressiona nestes surfistas é que a paixão sobrepôe-se à morte. Muitos deles como, por exemplo, os nossos lusitanos João Macedo, Alex Botelho e Hugo Vau, comportam-se com cuidado, um cuidado não no sentido pejorativo mas na elevação do trato com os outros. Falam com respeito e procuram a humildade, pois ninguém melhor do que eles tem a consciência da fragilidade humana. Nenhum deles quer morrer ou tão pouco pensa em ser recordado por alguma façanha. Quem procura a morte por atingir um feito são os fundamentalistas, os inconscientes ou os loucos, não é o caso destes homens de H grande, pelo menos da larga maioria dos surfistas de ondas grandes. A maioria deles vive com paixão, uma paixão maior que a própria vida.

 

Só por isso, o respeito que tenho por eles é maior que as ondas que procuram.

   Texto: Bernardo “Giló” Seabra 

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