Eric Arakawa Eric Arakawa Click por Pedro Gois sexta-feira, 28 novembro 2025 05:54

Precisão Transoceânica: A Filosofia de Eric Arakawa chega à Europa

Entrevista por João Valente...

De Michael e Derek Ho a Andy Irons, de Ronnie Burns a Jack Robinson, o nome de Eric Arakawa há muito é sinónimo de disciplina, tácita investigação, permanente evolução e surf de altíssima performance. Com mais de cinco décadas de carreira moldadas pelo feedback dos melhores, Arakawa lança finalmente a sua operação europeia através da fábrica portuguesa Blue Room, sob a liderança do CEO Romeu Ribeiro. O acordo de licenciamento resultou de estendidas conversas e de um alinhamento mútuo nos fundamentos da marca — uma expansão orientada pelos valores que pretende transplantar para o Velho Continente o ethos da relação personalizada da Arakawa Surfboards com o cliente. Nesta entrevista, Eric explica por que a paciência, o feedback honesto, as relações humanas e uma forte ética empresarial são os pontos cardeais que orientam tanto o seu ofício como este novo capítulo da sua gloriosa carreira.

 

 

«Faço pranchas para os profissionais 

para poder fazer melhores pranchas para o surfista do dia-a-dia — não o contrário.»

Fala-nos um pouco sobre o teu histórico de crescer no Havai e tornar-te shaper.

Bem, nunca foi um plano. Cresci na South Shore e o desporto da minha família era o basebol, não o surf. Mas ao crescer no Havai estás sempre perto do oceano, exposto às ondas e acabamos por estar sempre na água. Comecei a surfar aos 10 anos, só por ir à praia com o meu tio. Com o tempo aventurámo-nos e divertimo-nos a apanhar ondas em todo o tipo de embarcações.

Muita gente pensa que nascer no Havai torna natural seguir algo relacionado com o surf, mas não foi assim no teu caso, certo?

Não! Quero dizer, crescemos perto do mar e divertimo-nos nas ondas de todas as maneiras possíveis quando somos miúdos. Eu e os meus irmãos ligámo-nos ao surf; mas fui eu quem continuou e seguiu carreira. Na altura, eu era demasiado novo para trabalhar e precisava de uma prancha. Então decidi procurar um blank e comprar resina e fibra. O meu irmão mais novo tinha uma prancha muito grossa que já não usava, por isso arranquei-lhe a fibra e fiz a minha primeira prancha.

 

«O que um shaper precisa é de feedback honesto, não de palmadinhas nas costas.»

Que tal correu?

Sabes, nessa altura achei que tinha feito uma prancha bonita e lembro-me de pensar: “uau, é a minha primeira prancha!” Mas quando a levei para o mar foi, de longe, a pior prancha que alguma vez surfei. Até hoje nunca andei numa prancha tão má — não há sequer um segundo lugar lá próximo! Mas continuei e a segunda prancha que fiz foi para um amigo.

Foi tudo instinto ou alguém te mostrou as técnicas?

Não, não houve muita orientação. O meu pai era bom com as mãos, trabalhava em casa, fazia carpintaria e coisas do género. Talvez tenha apanhado um pouco disso, mas não houve formação formal nem mentoria no shaping. Eu olhava para outras pranchas e tentava copiar.

 

«O artesanato é uma questão de integridade, não de atalhos.»

 

 

 

Quando foi que começaste a moldar pranchas para outros além de ti próprio?

Foi com esse meu amigo — e ele ainda é meu amigo. Provavelmente a segunda prancha não era muito melhor que a primeira. Na altura não sabíamos muito; só queríamos ir para a água. Depois outro amigo pediu-me uma prancha, depois um amigo de um amigo. Antes que desse por mim, tinha pedidos de pessoas que não conhecia e pensei: “talvez isto seja um negócio”, por isso continuei.

E quando é que isso se tornou efetivamente um negócio?

Não sei. Estou eu num negócio agora? (risos). Acho que, talvez oficialmente, tenha sido quando decidi deixar a faculdade e seguir isto a tempo inteiro — para grande preocupação da minha avó e dos meus pais.

Só por ser o Havai não significa que a ilha inteira seja adepta do surf.

Não, há coisas diferentes. Na nossa família dava-se muita ênfase à educação, ir para a universidade e arranjar um bom emprego. Naquela época, nos anos 70, os surfistas eram vistos como drogados, arranjavam problemas e abandonavam a escola... Por isso, para mim aquilo foi mesmo contra o caminho normal da família, mas segui adiante. Não tenho arrependimentos e continuo a fazer aquilo que amo.

 

«A prancha mais amiga do ambiente é aquela que mais dura.»

 

Durante esses anos formativos como shaper, quem impactou a tua visão e abordagem na construção de uma prancha?

É uma boa pergunta. Houve um shaper chamado Harold Iggy — faleceu há alguns anos, mas era um artesão incrível. Trabalhou para a Weber Surfboards na Califórnia, embora fosse do Havai. Andei com as pranchas dele e funcionavam tão bem que tentei fazer com que as minhas se parecessem com as dele. E, sim, se conseguisse, interpretava isso como um sucesso.

A tua dedicação ao shape e às relações humanas profundas construiu uma marca de pranchas reputada e respeitada — evocando não só qualidade, mas também valores. Fala-nos um bocado desses valores e dessa ética.

Se calhar, devo isso à minha educação e à família. Ensinavam-nos a trabalhar duro, a dar o nosso melhor, a ser honestos, a fazer o melhor pelos outros — e esses valores transferiram-se para o ofício. Nunca me contentei com 80% de qualidade, por isso esforcei-me sempre por fazer melhor. É uma espécie de perfeccionismo, que por vezes é uma armadilha porque nunca estamos satisfeitos. Passei noites acordado a pensar que estava a falhar e que tinha de melhorar. Mas com os anos aprende-se a conviver com os erros e a encarar o dia seguinte como uma oportunidade para melhorar.

 

 

 

«Construir pranchas é um meio para se chegar a um fim.

O surf é um dom de Deus e une pessoas além de todas as barreiras.»

 

Fazer pranchas não é só criatividade; há muitas outras coisas que provavelmente aprendeste a trabalhar para outras marcas antes de te lançares sozinho. O que recordas desses anos de aprendizagem?

Houve um construtor de pranchas que me fez de mentor — o Gene Cambe, um shaper incrível. No que toca ao ofício, creio que ele teve a maior influência sobre mim. Já fazia isto há alguns anos quando ele apareceu e começou a ensinar-me a ciência por detrás das pranchas, ajudando-me a apurar competências não só no shape, mas também no glassing. E dizia sempre que “aceitável” não é aceitável — há que procurar sempre fazer melhor. Curiosamente, ele trabalhou para o Harold Iggy, o shaper que tanto me influenciou.

Trabalhas tanto com locais do North Shore como com profissionais do circuito. Como concilias e interpretas o feedback de cada um?

Boa pergunta! Pode parecer estranho, mas dedico tanto tempo ao surfista do dia a dia que me vem encomendar uma prancha como ao surfista profissional. Muitas vezes é fácil inverter as prioridades. Começas a fabricar pranchas, tens objetivos e facilmente pode dar para o torto. Fazer pranchas para os profissionais é um meio para chegar a um fim: aperfeiçoar o ofício, aprender mais, desafiar-te — e, no fim do dia, entregar uma prancha melhor ao surfista comum. Faço pranchas para os pros para poder fazer melhores pranchas para o surfista do dia a dia, não o contrário.

Como avalias o conhecimento que o surfista médio adquiriu acerca do seu equipamento ao longo do tempo? Dirias que hoje as pessoas sabem mais sobre as suas pranchas do que antes?

Acho que, com a internet e a cultura das redes sociais, os consumidores — incluindo os surfistas — autoeducam-se muito mais. Procuram e informam-se online para encontrar a prancha certa. Assim, muitas vezes aparecem já com alguma noção, mas nem sempre. Ainda tenho de os orientar. Há muito a ter em conta ao ajustar uma prancha personalizada: eu trabalho sobre cinco pontos básicos. Entro em alguns pormenores, mas, essencialmente, são: físico (altura, peso, tipo de corpo), nível de forma física, nível de habilidade, tipo de ondulação para a qual a prancha será desenhada — até spots específicos — e, por fim, os objetivos de performance do surfista. Considero tudo isto para decidir qual o modelo-base ou tipo de design a partir do qual começo a personalizar.

Trabalhas de forma diferente pranchas para surfistas que têm o seu surf apoiado sobre o pé da frente comparados com os que surfam mais a partir do pé de trás? Isso é considerado na configuração de um modelo?

Sim — há nuances que eu introduzo ou recomendo certos tipos de pranchas, mas não há mudanças de design drásticas. Posso inclinar-me para determinado desenho, mas um bom surfista não surfa apenas sobre o pé da frente; tem de transitar da frente para o tail. Há surfistas cujo pé dominante é o da frente, outros é o de trás, alguns são mais equilibrados, mas todos têm de fazer transferências de peso para surfar corretamente.

Acredito que um shaper aprende tanto com outros shapers como com surfistas capazes de dar bom feedback. Fala-nos um pouco daqueles que te ajudaram a aperfeiçoar o ofício através das suas observações precisas.

É uma pergunta interessante e talvez uma das mais fáceis de responder, porque há um surfista que teve mais influência no que sei do que qualquer outro: o Michael Ho. Comecei a fazer pranchas para ele quando era jovem, cerca de 22 anos. Achava que sabia muito, mas depressa percebi que sabia bem menos do que julgava. O Michael foi um verdadeiro campo de treinos — passei por uma experiência de aprendizagem intensa por sua causa. Aceitável não era aceitável: dizia-me “a prancha é boa, mas eu não consigo vencer com ela” — portanto, não era boa. Trabalhar com ele foi um processo de humildade, no bom sentido. Não houve outro surfista naquela fase da minha vida que moldasse e afinasse tanto as minhas capacidades como o Michael Ho. Era honesto, brutalmente honesto, e é isso que um shaper precisa — não de palmadinhas nas costas. Trabalhar com o Michael endureceu-me: podes dizer-me honestamente que a prancha não funciona e eu resisto.

 

 

«Se não perdermos a alegria de surfar, estaremos bem. 

Quando a alegria se vai, é altura de fazer outra coisa.»

 

Como se compara isso ao feedback que recebes hoje, por exemplo, do Shayden Pacarro, cujas qualidades de feedback tens elogiado ao longo dos anos?

Há anos que não tinha alguém assim. Avalio o grau de especialização do feedback pela referência do Michael Ho e já fazia muito tempo que nada lhe chegava aos pés. Entretanto apareceu o Shady Pacarro, que é muito perspicaz. Percebe de design de pranchas e sente muito bem o que tem debaixo dos pés. É refrescante. Analisamos tudo ao pormenor, até ao mais pequeno detalhe. No nível em que eles (os prós) estão, essa atenção aos detalhes é vital. Voltamos, portanto, ao cliché: “aceitável não é aceitável”.

Como era o Andy Irons quanto ao feedback?

Era precisamente o oposto — ele não se queixava. Se a prancha não funcionasse, pronto. Muitas vezes pegava numa prancha, surfava e partia tudo. Podia ser um bocado frustrante — não sei se “frustrante” será a palavra — porque ele levava para o heat uma prancha sem sequer a testar. Uma vez, no Pipe Masters, num dia enorme no segundo reef, meteu wax numa 7’6” com que nunca tinha surfado e foi para o heat. Tirou um 10, ganhou a bateria e requalificou-se para o circuito. Quando chegou à praia eu disse-lhe: “não faças isso outra vez!” Já tinha feito o mesmo em Huntington e em Lowers: usou uma 6’0” nunca testada e ganhou as duas provas seguidas. Foi sorte. Era assim, o Andy — imprevisível!

Quando observas o surf de alguém, profissional ou intermédio, o que te permite perceber de imediato se uma prancha está a funcionar bem ou não?

Boa pergunta. Por vezes, quando avalias um surfista e quando entregas pranchas aos pros, estas já passaram por um longo processo de afinação, a menos que se esteja a experimentar algo totalmente novo. Em competição observamos os pormenores mínimos. Eles podem estar a surfar bem, a ripar, mas analisamos quanto a prancha segura nas curvas, quanto power é aplicado no rail. Às vezes estás a ver que alguém só está a usar 80% do seu power. Ou não está a gerar aceleração suficiente na saída do bottom-turn. São subtilezas que a maioria não vê, mas se conheces o surfista e tens pranchas de referência, reparas nessas nuances. Quanto aos surfistas médios, intermédios, também há imenso a observar — é esse o trabalho do shaper. Tens de identificar se o problema é do design ou da mecânica do surfista. Às vezes a mecânica corporal não aplica força da maneira correta, por isso parece que a prancha não funciona, mesmo que o seu shape esteja bem feito. É uma questão de técnica do surfista e o olhar do shaper tem de perceber em que medida cada fator contribui.

Leandro Dora, pai do Yago e treinador do Jack Robinson, disse uma vez que convenceu o Jack a aprofundar a relação atleta/shaper contigo porque, na opinião dele, és o shaper que melhor “esconde” volume nas pranchas.

Ele disse-te isso?! Não, não, não! Talvez o tenha dito ao Jack, mas a mim nunca. Para mim, os perfis de borda (rail profiles) são muito importantes. Não sou um tipo grande, por isso nunca gostei de rails volumosos, mas gosto de apanhar ondas — e nunca ouvi alguém queixar-se de apanhar ondas a mais. O que ouço sempre é “não apanhei o suficiente”, “quero mais”. Quero pranchas que remem bem e que, ao executarem as curvas, me deixem sentir a curva; quero poder enterrar o rail e pisar com força na prancha. Rails grossos nunca me atraíram. Os shapers que admirei eram os que sabiam esconder volume. Especialmente em ondas pesadas, tens de vigiar o perfil do rail — senão vais ter problemas com o power.

 

 

«Ao avaliar performance olhamos aos pormenores minúsculos: a aderência numa curva, quanta potência o surfista consegue realmente aplicar, a aceleração a sair do bottom. A maioria não vê essas nuances, mas o shaper deve saber se é design ou mecânica do surfista que está a influenciar o desempenho

Ao longo dos anos temos visto surfistas que chegam ao CT só para, a seguir à qualificação, abandonarem o seu shaper de sempre por um cheque maior de uma grande empresa. Não deveria a escolha da prancha ser, acima de tudo, uma questão funcional?

Acho que muitas vezes o que sucede é uma tática das regatas — o tacking to cover — que aprendi com um amigo velejador de competição. Se és o barco da frente e vês o teu perseguidor a mudar rumo para apanhar melhor vento, mudas também para garantir o mesmo vento e não perder terreno.

Isso acontece muito no surf e noutros desportos: os melhores usam determinada estratégia ou equipamento e os outros seguem-nos para não perderem ritmo. Há muita gente a olhar por cima do ombro para ver o que os outros fazem, e outros a olhar para a frente para observar as tendências. Na altura em que fazia pranchas para o Michael e o Derek Ho havia mais pensamento independente, mais individualismo. Hoje há mentalidade de manada — mas sinto que estamos prestes a ver surfistas a romperem com isso. Exige coragem porque há risco, mas também há grande potencial de recompensa. Quando entra o dinheiro em jogo e as redes sociais amplificam a perceção de sucesso, a tentação é jogar pelo seguro em vez de arriscar. Nos anos 90 houve a moda das pranchas a encolher demais, a ficar finas, curvadas, estreitas — e isso depois foi corrigido alguns anos mais tarde.

 

Sinto que hoje há uma obsessão por pranchas mais curtas em competição que se assemelha àquela das pranchas excessivamente estreitas e finas dos anos 90 que mencionaste. Concordas que essa tendência para usar pranchas mais curtas leva à perda do power e drive que as pranchas mais longas proporcionam?

Sim — já vi isso acontecer várias vezes ao longo dos anos e das décadas, desde miúdo, vendo alguns dos meus heróis a surfar. As pranchas eram super estreitas. Lembro-me do BK (Barry Kanaiaupuni) a surfar pranchas de 17½” de largura — e ele não é pequeno, pelo que é uma medida muito estreita. Depois vieram pranchas largas, com a influência do Ben Aipa, larguíssimas. Depois encolheram e perderam largura, mas acrescentaram muito rocker, como nos dias do Kelly Slater e do Greg Weber.

Como as do finado Shane Herring…

Sim — eu costumava fazer pranchas para todos esses surfistas quando vinham ao Havai, e algumas pareciam autênticas bananas. Mas isto faz parte da evolução do design. Testamos os limites: até onde podemos ir na largura, quanto de volume podemos tirar. Vamos aos extremos e voltamos ao centro. Acho que nos desviámos um pouco e agora estamos a regressar. Se há algo a notar, é que as pranchas estão a ficar um pouco mais longas — não muito, apenas ligeiramente. Outra questão é que existem marcas... não sei até que ponto devo desenvolver esta ideia, mas não é fácil fazer uma prancha longa virar. Com a nossa experiência no Havai e a conceber modelos para o North Shore, somos frequentemente obrigados a surfar pranchas mais longas, por isso sabemos fazê-las virar. Existe um ponto de retorno decrescente: se for demasiado longa, sacrificas performance e a pureza das curvas. Mas existe forma de fazer a prancha virar, aplicar power, colocá-la no rail e perceber o que significa pôr uma prancha no rail e fazer um power turn. Isso nunca envelhece. Prefiro ver essa habilidade e agilidade aplicadas a uma curva potente do que ver apenas um aéreo ou uma rotação — aquilo não desaparece do surf, nunca envelhece.

 

«O surf não é só físico; serve o corpo, a alma e o espírito.

Se negligencias uma parte do teu ser — física, emocional ou espiritual

— tudo o resto sofre.»

Eu acrescentaria que o surf aéreo também não vai desaparecer. Goste-se ou não, foi o maior avanço de performance dos últimos 20 anos. Não é questão de ser bom ou mau — faz parte do repertório do surfista.

A competição tem grande influência nisto. O que os tops usam cria tendências, mesmo numa era em que há designs retro e pranchas alternativas que tanta gente procura porque se alinham com a sua experiência e expectativas ao surfar. Acho que os top surfers continuam a ter muita influência e, nesse sentido, a mudança que vimos nos critérios de julgamento nos últimos dois a três anos — quando os juízes passaram a valorizar tanto o surf de rail e as power turns quanto os aéreos — trouxe algum equilíbrio. Não é uma questão de escolha, é integrar tudo ao melhor nível possível na tua forma de surfar.

À parte preferências pessoais, qualquer avanço de performance deve ser integrado na avaliação do que é bom surf. No fim do dia ou ao fim de uma longa época, as pessoas comparam o que é corriqueiro com o que é excecional — o excecional tem de ser mais recompensado. Há tipos de aéreos que já não pontuam tanto como antes. Lembras-te daquele evento em Nova Iorque onde o Kelly fez um aéreo e lhe deram um 10 só por uma manobra? Hoje isso não acontece. Mais uma vez: o que se torna corriqueiro perde brilho; o excecional sobressai. E isso não é estático — muda.

Isso traz uma coisa que me incomoda: a distinção entre “progressivo” e o outro tipo de surf. Faz esquecer que, por exemplo, um full rail roundhouse cutback é provavelmente uma das manobras mais difíceis e, se quiseres chamar-lhe, progressiva que existem. Portanto, o que torna a distinção enganadora.

O surfista maximiza o que a onda lhe oferece. Algumas ondas proporcionam secções para aéreos, outras para tubos — é, no fundo, uma tela em branco. Os melhores já sabem como o maximizar; têm essa ligação. Um dos melhores com quem trabalhei sabia maximizar qualquer coisa: o Andy Irons. Vi-o traçar linhas completamente inesperadas. Era quase como se soubesse o que a onda ia fazer a seguir. Era imprevisível, mas não parecia ter de pensar. Assim que percebia a secção já se estava a posicionar antes mesmo desta se formar. Observas isso em alguns dos melhores surfistas: o Jack Robinson tem isso; o Kelly também tinha. É impressionante. E não são só os surfistas — vês isto em atletas de topo em geral. Podem não ser os mais académicos, mas os seus cérebros processam informação mais depressa do que a média. No basebol, és capaz de “ver” o que acontece quando a bola sai da mão do lançador. No futebol, os melhores sabem onde a bola vai estar; os restantes reagem. O melhor jogador processa o campo todo, os companheiros, a equipa adversária. Não é só habilidade ou força física — é o cérebro a processar informação de forma superior.

 

«Ecológico, amigo do ambiente… são palavras de ocasião. Recuso-me a usá-las só para vender.

Se vamos ser sustentáveis, que o sejamos a sério.

Recuso o greenwashing para vender mais quando não somos melhores do que a marca ao lado.»

Passando para o tema da tecnologia. Após abraçares quase de imediato a tecnologia CNC, que de certa forma transformou os shapers em designers, agora estamos prestes a ter feedback baseado em dados analisados por IA sobre como uma prancha funciona sob os pés do surfista. Já existe algo que se possa revelar sobre desempenhos avaliados por IA?

Estava à espera dessa pergunta! Estava à espera que a IA surgisse! Bem, com cada ferramenta, com cada nova tecnologia, há o uso honesto e produtivo — o uso pretendido — e há o abuso. Como tudo o que quero é construir melhores pranchas para os meus clientes e para a minha equipa, quando apareceu a tecnologia CNC abracei-a porque a vi como uma ferramenta. Não era trapaça. Não achei que se perdesse a alma — trata-se de informação. Lixo entra, lixo sai, mas se introduzes boas informações, obténs uma boa prancha. Fui muito criticado por isso; houve quem me acusasse de estar a vender-me — hoje em dia todos eles usam CNC. Portanto, novamente: não tenho medo de experimentar.

A tecnologia IA, sendo honesto, assusta-me um bocado porque passamos para outro nível. No design de pranchas, não sei... Outra vez: é informação, mas pode haver abusos, muita pirataria, gente sem integridade a operar. O impacto que terá em indústrias como a arte, música, arquitetura, cinema, advocacia... é incrível. Tudo o que posso fazer, enquanto líder da marca e da empresa, é preservar o elemento humano junto aos nossos clientes. As relações são muito importantes. A IA pode imitar um humano, mas nunca será humana. Entregar essa ligação humana e conectar-nos relacionalmente — é por isso que faço o que faço. É um meio para um fim imediato. Deixando as questões filosóficas de lado, será, no mínimo, interessante ver os dados que uma prancha cheia de sensores pode gerar sobre a força que um surfista aplica, como movimenta a prancha e que pressões exerce. Há certamente conhecimento a recolher daí. Vejo-a como outra ferramenta. Se a tiver, usá-la-ei para entregar melhores pranchas aos meus clientes.

O teu distribuidor europeu, Romeu Ribeiro da Blue Room, enfatiza a necessidade de uma economia circular aplicada ao setor do surf e à produção de pranchas. Quão importante é a sustentabilidade para uma marca como a Arakawa e como vês o futuro da indústria do surf nessa área?

Fico contente por perguntares — pois tenho opiniões firmes. “Ecológico”, “amigo do ambiente”, “sustentável”… são palavras da moda. Recuso-me a usá-las só para vender mais. Se vamos ser sustentáveis, que o sejamos a sério. Recuso-me a fazer greenwashing para aumentar vendas quando não somos melhores do que as marcas ao lado. Há muita hipocrisia, muita manipulação. Uma suposta ONG ambiental veio à minha fábrica e perguntou: “usam resina epóxi?” Respondi: “sim, fazemos pranchas em epóxi.” “Usam EPS?” “Sim, usamos EPS.” Então disseram: “ok, então podem pôr o nosso selo ‘Sustainable Surf’ nas pranchas porque qualificam como marca verde.” O que é que isso faz? Não vou pôr. Qual a diferença? Diz-me: para onde vai a prancha de epóxi quando acaba a sua vida? Para o mesmo sítio que a de PU poliéster: o aterro sanitário. Então por que é que isso é ser mais amigo do ambiente? Os materiais são menos tóxicos? Não são. O EPS contém produtos químicos em barda — não é mais seguro. Antes de afirmarem fazer algo de notável, venham ver o que fazemos. Façam o trabalho de casa.

Não quero ser mal interpretado: sou a favor de cuidar do ambiente. Com a tecnologia disponível, sabes qual é a prancha mais amiga do ambiente? A que mais dura. Se fizeres a prancha para durar, ela não vai parar no aterro ao fim de pouco tempo. E é aqui que muitas soluções ambientais falham: por vezes, para criar uma prancha mais duradoura, tens de recorrer a materiais menos “eco-sexy”.

O economista americano Thomas Sowell diz que não há soluções, apenas compensações — nada é resolvido; no máximo mitigado, muitas vezes criando novos problemas.

Sim — há um equilíbrio; há sempre efeitos do outro lado. A nossa filosofia, outra vez, é relacional. Todas as relações passam por considerar os outros como mais importantes do que nós próprios. O motivo pelo qual vou apanhar lixo é para quem vem depois não ter de o ver. Vou tentar limpar a água da minha praia para que outros surfistas desfrutem de um ambiente limpo. Há coisas que posso fazer e não é um sistema fechado. A segunda lei da termodinâmica traduz-se na ideia de entropia: tudo tende do ordenado para o desordenado, as coisas degradam-se, e no fim tudo se resume a uma boa gestão — stewardship — do que temos, gerir os recursos da melhor forma possível. E não é só por nós, é pela próxima geração, ou até pela pessoa que vem à praia na semana a seguir. Se começarmos a valorizar as relações à nossa volta, seremos melhores e mais honestos na proteção do ambiente.

Falemos da sua operação europeia, há muito desejada, acrescentaria eu. Quando o Romeu revelou que trabalhava no lançamento europeu da Arakawa, falou do peso cultural e da profundidade espiritual da marca. O que te levou a finalmente lançar a Arakawa na Europa?

Mais uma vez — muito tenho usado esta palavra! — são as relações. Nos últimos 10 a 15 anos fui abordado por várias empresas para licenciar a minha produção na Europa. Eu esperei pela pessoa certa, pela fábrica certa, pela operação certa. Venho à Europa desde 1981, especialmente a França. Vi o centro da indústria do surf europeu a deslocar-se: primeiro foi na Cornualha, em Inglaterra, depois o sudoeste de França e, hoje, em grande parte, ainda está lá. Mas com o crescimento do surf e a descoberta de ondas e mercados, há muita deslocação para Portugal. Aqui há uma abundância de ondas, clima, estilo de vida, economia — funciona. Esperei muito tempo, resisti à tentação de começar de forma apressada porque procurava algo duradouro. A empresa com que fosse trabalhar tinha de partilhar fundamentos e valores essenciais da marca. Percebi logo que havia algo diferente no Romeu e não apressámos as coisas. Tivemos conversas prolongadas durante meses. Vim cá no ano passado para o conhecer pessoalmente, ver a fábrica e perceber o mercado — e no último dia decidi licenciar a Blue Room.

 

 

O que o Romeu queria dizer ao falar do “peso cultural” e da “profundidade espiritual” da Arakawa?

Para mim, fazer pranchas é um meio, não um fim. Vejo o surf como um dom divino — pode ser usado de forma egoísta ou negativa, mas também pode ser usado de forma positiva. Vejo o surf como um modo de ligar pessoas. Transcende línguas, barreiras culturais, religiosas e socioeconómicas. Vejo-o como um conector de pessoas. O meu negócio e a nossa equipa procuram usar esse dom para agradecer, para espalhar a mensagem do surf — mas também as boas-novas do Evangelho. Sou cristão. Antes perguntaste-me sobre as minhas influências: a minha vida não é influenciada por ninguém senão por Jesus Cristo. Aprendi que há muito mais na vida do que apanhar tubos e construir um negócio de sucesso. Alguém me disse uma vez que a importância dos guias espirituais é mostrar-te um caminho para explorares o máximo do teu potencial.

Como te vês a transmitir o conhecimento que reuniste e como achas que a Arakawa pode beneficiar disso?

Isso é um dos nossos objetivos. Estou a preparar o meu filho para assumir o negócio; ele é um gestor muito melhor do que eu alguma vez poderia ser. E tenho uma equipa muito boa no Havai. O que queremos é conquistar a confiança dos clientes e dos parceiros da marca. Parece um discurso comercial, mas é verdade. Fizemos este exercício de escrever os valores essenciais preto no branco, o quadro da nossa visão. Queremos ter a confiança dos nossos clientes, parceiros e de outros na indústria. Para mim, passar conhecimento à próxima geração é crucial. Não quero que o conhecimento se perca. Vejo muito potencial na nova geração e, como alguém com tanto tempo disto, sinto-me na responsabilidade de transmitir essa informação.

Qual é a sua ambição a longo prazo para a Arakawa Europe?

Há muitas nuances e facetas nessa pergunta. Respondo de forma direta: trazer uma representação fiel do que fazemos no Havai — e isso passa por ligar-nos um a um com o cliente. Enviamos pranchas para surf shops com as quais temos ligação, mas o que nos distingue é o contacto direto com os clientes.

Afirmaste que a certa altura shapar pranchas pareceu-te algo insignificante até perceberes que as tuas pranchas ajudavam as pessoas a cuidar do “corpo, alma e espírito” quando remam para o mar. Como essa nova visão espiritual orienta hoje a tua forma de shapar?

Na minha família dava-se muita importância à educação: tiras uma licenciatura, fazes carreira. Eu saí desse grupo, arrisquei, e 40 anos depois aqui estou.

 

«A tecnologia é uma ferramenta, mas a ligação humana é insubstituível.

A IA pode medir performance, mas não pode substituir a relação entre shaper e surfista.»

 

De certa forma, essa é a história do surf, não é? Uma data de dropouts.

Sim, e alguns deram certo, outros não. O meu irmão é engenheiro, CEO de uma empresa de implementação imobiliária, e gere milhares de milhões. Outro irmão tem uma licenciatura em educação. A minha irmã é advogada e trabalha na Suprema Corte. Tenho primos médicos, advogados, engenheiros — eu fui aquele que se dedicou ao surf. Estive em conflito durante anos: talvez devesse ter ouvido a minha avó, ficado na escola e seguido o caminho que queriam para mim. Quando veio a Covid e fomos todos trancados, o governador do Havai afirmou que “o surf é um desporto essencial, por isso podem surfar”. Não podíamos estar na praia a ler um livro, mas podíamos ir para a água como atividade essencial. De repente começaram a encomendar-me pranchas pessoas que não surfavam há muito tempo: médicos, advogados, engenheiros — todos a pedir conselhos sobre as pranchas. Percebi então que o surf não é uma atividade frívola. Não se limita ao corpo físico. Deus criou-nos corpo, alma e espírito: negligenciares uma parte deixa-te doente. Percebi que o surf me liga ao divino; alivia o stress da minha vida. Agradeço por ter tomado este caminho. Foi um grande risco e, por vezes, ainda sinto ser um risco. O surf é risco — e isso faz parte da diversão. Se não corrermos riscos na vida, para que estamos aqui?

Se um miúdo te perguntasse hoje o que é o shaping, quanto teria mudado a resposta que lhe darias há 20 anos?

Há 20 anos eu teria provavelmente dito que satisfazia a necessidade de sustentar a família. Hoje, como disse antes, trata muitas necessidades — da pessoa inteira. O shaping ajuda-me a conectar com pessoas; aí está a recompensa. Tenho amigos em toda a parte. Isso não teria acontecido se tivesse ido para a universidade tirar engenharia — que teria sido bom, não desvalorizo — mas talvez tivesse fixado residência num sítio e nunca saído de lá. Valorizo ter amigos em tantos países: tenho imensas portas onde bater a perguntar se há uma cama a mais. Mesmo sem falar fluentemente a língua ou tendo crenças diferentes, reunimo-nos em torno desta paixão comum pelo surf — e acho isso lindo.

Sei que é uma pergunta vasta que toca imensas áreas, mas tens uma visão para o futuro do surf?

Acho que precisamos é de encontrar o nosso lugar no futuro. Faço isto porque amo surfar. Se puder continuar a surfar, estarei bem. O meu pico local vai ter mais gente? Provavelmente — e aceito isso até certo ponto. Se não perdermos a alegria do surf, estaremos bem. Quando a alegria desaparecer e começarmos a ver o copo meio vazio em vez de meio cheio, talvez seja tempo de fazer outra coisa. Não controlo o crescimento do surf; apenas preparo-me para o que aí vier.

 

Fotos por Pedro Góis

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