Ser Goofy terça-feira, 21 agosto 2018 15:51

Ser Goofy

Um crónica sobre os surfistas que surfam com o pé direito à frente… 

 

Fomos apelidados de Patetas bem cedo, corria o ano de 1937 quando Walt Disney* resolveu fazer o filme “Hawaiian Holiday” onde o inimitável Pateta, célebre figura da banda desenhada, surge a surfar com o pé direito à frente. A partir desse momento já ninguém nos tirou o rótulo de “Goofy Footers”. Os verdadeiros anormais dentro da anormalidade que já era o Surf na época, passaram a ter nome desde então.

 

Não há dúvida que ao longo da História a natureza criou mais regulares do que goofy’s. Nick Caroll tem uma teoria que é, no mínimo, curiosa. As melhores ondas para Longboard nos anos 50/60, tanto na Califórnia como na Austrália (os dois grandes polos de surfistas na época), eram na esmagadora maioria direitas o que facilitava o ato de nos levantarmos na prancha como regulares. Nessa altura, o take-off era racional para podermos desfrutar da onda com mais facilidade. Não era algo cru nem instintivo como começou a ser através das Shortboards nos idos de 80, aumentando desde aí, gradualmente, o número de goofy’s.

 

Há, possivelmente, também uma teoria neurológica. Está provado que o hemisfério esquerdo do cérebro controla o nosso lado racional, enquanto o hemisfério direito o emocional e filosófico. Simplificando, o lado esquerdo é mais lógico e o direito mais criativo. A parte direita do cérebro controla a parte esquerda do corpo, pois não é por acaso que há cerca de 90% de destros - escrevem com a mão direita porque são estimulados pelo hemisfério esquerdo racional. 

 

Ora, no surf, a proporção é obviamente bem menor, mas sabemos que é o nosso pé posicionado no tail da prancha que comanda e direciona a mesma. Desta forma, os goofy’s seriam mais criativos do que os regulares… mas todos nós sabemos que não é bem assim que se processa. 

 

É um facto que os goofy-footers têm muito menos sucesso competitivo. Só em títulos mundiais, por exemplo, a diferença entre surfistas goofy’s e regulares é quase o dobro. Em surfistas com três ou mais títulos mundiais a hegemonia dos regulares é total! Mark Richards, Tom Curren, Kelly Slater, Mick Fanning e Andy Irons. 

 

- A recente vitória de Gabriel Medina no Taiti trouxe uma esperança renovada aos goofy-footers. Foto: WSL/Poullenot

 

Um argumento válido é o critério da escolha dos campeonatos que claramente favorece os regulares. Snapper Rocks ou Jeffrey’s Bay são a prova e mesmo antigamente a maioria das provas na Austrália e na Califórnia eram feitas em direitas. 

 

Neste momento temos Gabriel Medina, o nosso coringa, o nosso trunfo competitivo. É a nossa vingança, um vencedor nato extremamente competitivo e racional. Funciona como um regular disfarçado de goofy e é com ele que contamos para ganhar Pipe e diminuir a nossa humilhação em títulos mundiais.

 

Por cá temos surfistas como Filipe Jervis, Pedro Boonman ou Francisco Alves que mostram a nossa raça. Mas lá está, quem usualmente ganha são sufistas de “regular stance” como Tiago Pires, Vasco Ribeiro, Miguel Blanco e Frederico Morais. 

 

Outro exemplo que nos envergonha será relembrar que desde 2000 um goofy-footer não vence o Pipe Masters. Rob Machado, esse sim, confirma a teoria criativa e foi o último a vencer nas areias do North Shore, apesar de sabermos que o Pipe Masters não tem gozado de muitas ondas nos últimos anos, beneficiando o pico de Backdoor - e hoje em dia entubar de backside permite travar e acelerar através dos braços e do corpo, mas isto é apenas uma justificação derrotista que não me convence. Em Pipeline os goofy’s têm de sobressair como antigamente e dropar atrás do pico, como fizeram Gerry Lopez, Rory Russel, Larry Blair, Derek Ho, Tom Carroll e Mark Occhilupo. Todos eles venceram e deixam muitas saudades.

 

- Pedro Boonman entocado na Praia de Carcavelos. Foto: Miguel Soares

 

Mark Occhilupo, para além de vencer o Pipe Masters, será sempre o nosso Andy Irons, o génio carregado de carisma e talento que não deixa uma gota d’água fora do lugar. Há uma tímida identificação entre nós, os goofy’s, que no seu no íntimo torcem naturalmente pelos goofy’s. É com prazer que recordo a radicalidade do Dapin, o “power” do Faneca ou do André Pedroso, o surf ágil de Tó Vieira, a linha de surf do Xaninho, a criatividade do Bonneville, a competitividade do Pirujo, a elegância do Pecas, a audácia do Nicolau, os drops massudos do João Macedo, os tubos na Crazy Left do João Guedes, a verticalidade do Edgar. Enfim, não é que os goofy’s não apreciem os regulares, não é isso, mas acima de tudo identificam-se entre eles.

 

Na minha família, por exemplo, somos todos goofy’s e lá bem no nosso íntimo isso é uma satisfação. Uma satisfação que não se diz, que não se comunica, mas que está lá, sempre presente. A satisfação dos regulares por serem a maioria faz menos sentido, enquanto a nossa satisfação, a dos goofy’s, é uma satisfação positiva de resistência duma minoria de surfistas que de forma invisível se tenta proteger.

 

Não precisamos de vencer mais vezes, não é isso o mais importante, só queremos preservar a nossa identidade. No fundo, só desejamos que esta nossa “mutação surfística” prevaleça no tempo e a melhor maneira de o fazer talvez seja mesmo valorizar os que cá estão.

 

   Texto: Bernardo "Giló" Seabra

 

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* Coincidentemente, esta semana saiu a notícia de que Nick Franklin, um antigo executivo da Disney, foi nomeado Presidente da Kelly Slater Wave Company pela WSL. O futuro e a transformação do Surf Ranch de Lemoore está agora nas mãos deste homem. Até parece que já estamos a ver o Pateta a receber os visitantes à entrada das instalações e a fazer propaganda pela WSL. 

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