DA PANDEMIA MUNDIAL AO SURF PORTUGUÊS? segunda-feira, 13 abril 2020 09:47

DA PANDEMIA MUNDIAL AO SURF PORTUGUÊS?

A ecologia explica-nos como e porquê...

Pelas palavras das biólogas marinhas portuguesas Diana Madeira e Carolina Madeira.

 

É certo, estamos perante um marco na história da Humanidade. Em poucas semanas, o mundo como o conhecemos mudou. E talvez nunca mais volte a ser o mesmo.

O mundo paralisou. Ao entrarmos em quarentena, as pessoas ficaram em casa, as viagens e os transportes diminuíram (por terra, mar e ar), e muitas indústrias pararam as suas produções. Esta paralisação à escala global levou a uma diminuição massiva na emissão de gases com efeito de estufa, e consequentemente, da poluição atmosférica. As primeiras estimativas indicam que só a China terá reduzido em 25% as suas emissões de carbono desde janeiro (1), e prevê-se que a Europa deverá emitir menos 400 milhões de toneladas métricas de CO2 durante a pandemia, valor que supera as emissões anuais da França (2). Esta descarbonização da atmosfera que os cientistas andam a aconselhar há anos aos governos - e que é, afinal, uma meta do desenvolvimento sustentável estabelecida pelas Nações Unidas (3), nunca se pensou que ocorresse forçosamente à custa de uma pandemia e vidas humanas. Logo, é difícil ver este efeito pelo seu lado positivo. Passamos a explicar. Esta diminuição, apesar de real, é apenas temporária. E deve-se ao facto de todos nós estarmos fechados em casa, sem podermos ir ao local de trabalho, ver a família e os amigos e fazer aquilo de que gostamos. Estamos em modo de sobrevivência. Mas será que temos de parar de viver em pleno para diminuirmos a nossa pegada de carbono como sociedade? O verdadeiro desafio é conseguir este resultado quando temos as nossas atividades normais a decorrer.

Este tempo em casa é útil para refletirmos em que mundo queremos viver no futuro. É no fundo, uma oportunidade para a Humanidade se redefinir a si mesma como parte integrante da Natureza. Ao reconhecermos o Antropocentrismo como uma causa fundamental de destruição ambiental (4), e a dependência direta entre a saúde humana e a do planeta (5), a proposta ética é a de questionarmos os valores de base da sociedade moderna. A forma como governarmos o uso humano dos recursos ambientais atualmente (para satisfação das nossas necessidades imediatas), deverá reger-se antes por uma compreensão profunda das consequências das nossas ações na manutenção a longo prazo dos ecossistemas (conceito que está na base da Ecologia Profunda, ou Deep Ecology, termo forjado inicialmente pelo filósofo norueguês Arne Naess em 1973 (6)).

Queremos optar por estratégias sustentáveis, de modo a que todos possamos levar a nossa vida, mas com menor impacto no meio ambiente? Queremos investir em energias renováveis, infraestrutura ecológica e formas inovadoras de produção vegetal e animal de forma a que esta diminuição nas emissões de carbono se torne uma tendência decrescente e não somente uma redução temporária? Há já algumas inovações tecnológicas que nos permitem atingir os objetivos de uma economia mais sustentável e circular. Por exemplo, temos tecnologia suficiente para fazer agricultura vertical (7), altamente sustentável, ou obter produtos de carne a partir de linhas celulares animais (8), evitando os impactos nefastos da criação intensiva no bem-estar animal e no ambiente, ou ainda de ter sistemas de aquacultura multitrófica integrada (9), que nos permitem produzir várias espécies aquáticas, reaproveitar nutrientes e reduzir a poluição pelos efluentes de aquacultura. Temos também o exemplo do Movimento de Transição para criar cidades resilientes (10), que segue os princípios da Cabeça (aplicar o conhecimento disponível e inteligência colectiva na procura de soluções sustentáveis), Coração (trabalhar com compaixão, valorizando as dimensões emocionais, psicológicas, relacionais e sociais do trabalho) e Mãos (tornar as nossas ideias e visões em algo tangível para criar uma economia local saudável).

 

 

 

 

 

Podemos também investir cada vez mais na produção de energias renováveis, área em que Portugal já é um exemplo. O grande desafio é este. Promover uma economia baseada na produção sustentável e tecnologias verdes com menor impacto no meio ambiente. Só assim iremos limitar os efeitos decorrentes das alterações globais (destruição de habitats, poluição, aquecimento global, acidificação oceânica) cujos impactos têm sido devastadores em várias zonas do globo. Há já um consenso científico de que estamos perante uma sexta extinção em massa (11) devido aos efeitos do Homem nos ecossistemas. Por exemplo, as ondas de calor extremas que ocorreram nos últimos anos na Austrália destruíram uma parte significativa da Grande Barreira de Coral (12). No mar português, devido ao aquecimento global, verifica-se cada vez mais uma diminuição das espécies de peixe de climas temperados e começam a aparecer espécies de origem subtropical e tropical (13), alterando a forma como os diversos organismos se inter-relacionam no ecossistema. Há mesmo quem defenda que as alterações climáticas deveriam ser declaradas pela Organização Mundial da Saúde como uma emergência de saúde pública (14), devido aos seus impactos a nível da segurança alimentar e aumento de surtos de doenças.

Apesar de algumas falsas notícias sobre o rápido retorno da vida selvagem às cidades agora desertas (15), é verdade que existem alguns relatos de biólogos em como a diminuição da presença humana tem reduzido o stress em espécies mais sensíveis, existindo alguns avistamentos de animais selvagens em zonas rurais e costeiras onde não eram vistos há diversos anos (16). As projeções preliminares indicam que, num mundo pós-pandemia, o ecoturismo poderá vir a beneficiar de um crescimento, em detrimento do turismo massificado pouco sustentável e com concentração de multidões (17), refletindo o sentimento generalizado que as atividades ao ar livre parecem ser o melhor antídoto mental e físico ao stress causado pela pandemia. Neste sentido, Portugal, como local de excelência de parques naturais costeiros e anfitrião da Reserva Mundial de Surf da Ericeira, poderá ver a sua comunidade de surf crescer, em renovada apreciação por este serviço vital que nos proporciona o ecossistema marinho. E neste contexto, sugerimos que surfistas e biólogos se unam para promover a literacia dos oceanos e valorização do meio ambiente nas camadas mais jovens da população.

Cabe-nos então decidir… qual o futuro que queremos construir pós-pandemia? Teremos que ter um papel interventivo na conservação da natureza, com soluções inovadoras, mas controversas como a evolução assistida (18), em que facilitamos a adaptação das espécies às pressões ambientais? Ou conseguimos adaptar o nosso modo de vida e economia, integrando a visão de que a espécie humana faz parte da rede de biodiversidade, e temos que a proteger? Está na hora de arregaçarmos as mangas e resolvermos este problema de saúde do nosso planeta. 

 

 

 

Diana Madeira tem um Doutoramento em Química Sustentável, pela Universidade Nova de Lisboa, e Carolina Madeira em Biologia Marinha e Aquacultura, pela Universidade de Lisboa. O trabalho das biólogas portuguesas tem sido reconhecido ao longo dos anos, tendo ambas recebido vários prémios pelos seus trabalhos na área da ciência.

 

 

Referências:

(1)CarbonBrief (2020), https://www.carbonbrief.org/analysis-coronavirus-set-to-cause-largest-ever-annual-fall-in-co2-emissions, acedido em 10-04-2020

(2)Stone M (2020) Carbon emissions are falling sharply due to coronavirus. But not for long. National Geographic, https://www.nationalgeographic.com/science/2020/04/coronavirus-causing-carbon-emissions-to-fall-but-not-for-long/, acedido em 10-04-2020 

(3)UN, 2015. Transforming our world: 2030 Agenda for Sustainable Development, United Nations General Assembly, 35 pp. https://sustainabledevelopment.un.org/?menu=1300

(4)Rothenberg D (2012) Deep Ecology, in: Encyclopedia of Applied Ethics [ed. Chadwick R], 2nd Edition, Elsevier, Academic Press, pp 738-744.

(5)Amri HE, Boukharta M, Zakham F, Ennaji MM (2020) Chapter 27: Emergence and reemergence of viral zoonotic diseases: concepts and factors of emerging and reemerging globalization of health threats, in Fundamental and Basic Virology Aspects of Human, Animal and Plant Pathogens [ed. Ennaji MM], Elsevier, Academic Press, pp 619-634. 

(6)Naess A (1973) The shallow and deep, long-range ecology movement: A summary. Inquiry 16: 95–100.

(7)Benke K, Tomkins B (2017) Future food-production systems: vertical farming and controlled-environment agriculture. Sustainability: Science, Practice and Policy 13 (1), 13-26.

(8)Tuomisto HL, Teixeira de Mattos MJ (2011) Environmental impacts of cultured meat production. Environmental Science and Technology 45 (14), 6117-6123.

(9)Chopin T (2013) Aquaculture, Integrated Multi-trophic (IMTA). In: Christou P., Savin R., Costa-Pierce B.A., Misztal I., Whitelaw C.B.A. (eds) Sustainable Food Production. Springer, New York, NY.

(10)Patrick R, Dooris M, Poland B (2016) Healthy Cities and the Transition movement: converging towards ecological well-being? Global Health Promotion 23(1): 90-93

(11)Ceballos G, Ehrlick PR (2018) The misunderstood sixth mass extinction. Science 360, 1080-1081.

(12)Hughes TP, Kerry JT, Álvarez-Noriega M, et al (2017) Global warming and recurrent mass bleaching of corals. Nature 543, 373-377.

(13)Teixeira C, Gamito R, Leitão F, Cabral H, Erzini K, Costa MJ (2014) Trends in landings of fish species potentially affected by climate change in Portuguese fisheries. Regional Environmental Change 14, 657-669.

(14)Harmer A, Eder B, Gepp S, Leetz A, van de Pas R (2020) WHO should declare climate change a public health emergency. BMJ 368, m797.

(15)Daly N (2020) Fake animal news abounds on social media as coronavirus upends life: Bogus stories of wild animals flourishing in quarantined cities gives false hope—and viral fame. National Geographic, accessed 10-04-2020, https://www.nationalgeographic.com/animals/2020/03/coronavirus-pandemic-fake-animal-viral-social-media-posts/

(16)Corlett RT, Primack RB, Devictor V, Maas B, Goswami R, Bates AE, Koh LP, Regan TJ, Loyola R, Pakeman RJ, Cumming GS, Pidgeon A, Johns D, Roth R (2020) Impacts of the coronavirus pandemic on biodiversity conservation, Biological Conservation, https://doi.org/10.1016/j.biocon.2020.108571 

(17)https://opcaoturismo.pt/wp/algarve-acredita-nas-mais-valias-do-destino-pos-covid-19/, acedido em 12/04/2020

(18)Van Oppen MJH, Oliver JK, Putnam HM, Gates R (2015) Building coral reef resilience through assisted evolution. Proceedings of the National Academy of Sciences of USA 112 (8), 2307-2313.

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