Tom Blake Tom Blake terça-feira, 01 dezembro 2020 10:50

"Natureza = Deus" - Tom Blake" - in CRÓNICAS DE UM SURFISTA DE MEIA IDADE

Fará sentido distinguir natureza ou Deus?...

 



“A Voz da Onda”, texto escrito em 18 de julho de 1968, foi a primeira reflexão que Tom Blake (Thomas Edward "Tom" Blake (8 de março de 1902-05 de maio de 1994) publicou, e que mais tarde viria a desenvolver na “A Voz do Átomo”, onde teoriza sobre o algoritmo que permite compreender a sua perspetiva espiritual sobre o Surf.

Drew Kampion, numa entrevista recente à Surftotal (Kampion, 2020), atesta que Tom Blake, com “(…) o seu estilo de vida não materialista e nómada, modelou os valores mais "anti-establishment" do surf nos anos 60 e 70 e até aos dias de hoje (um pouco por todo o lado)”.

Foi precisamente no Stoked (Brown, 1997), que guardo religiosamente desde final do século passado, que li sobre Tom Blake, mas foram precisos alguns anos para perceber a sua importância, não apenas no desenvolvimento de novas técnicas de construção e pranchas, mas no campo da espiritualidade relacionado com o Surf.


O mês de Dezembro, repleto de bons sentimentos de partilha, confraternização, família e espiritualidade, é o momento certo para oferecer a todos uma humilde tradução desse texto, que penso ser a primeira em português de Portugal, esperando que seja o pontapé de saída para uma maior divulgação e conhecimento daquele que foi apelidado de “Quem nos ensinou o significado de ser surfista” (Housman, 2020).

 

 

 

"Não será de estranhar que o surfista obtenha tanto prazer em surfar uma Onda.

 

Por um curto período de tempo ele usufrui desta energia divina..."

 

 


“A Voz da Onda:

 

"Há mais do que aparentam as ondulações de águas profundas que marcham majestosamente através do mar ao som dos tambores silenciosos do átomo. Marinheiros de todos os tempos sabem disto. Também os surfistas que passam anos das suas vidas observando-as de perto, enquanto a sua energia é libertada sobre praias e recifes como numa sinfonia de sons e formas de dimensões estranhas.
O surfista está consciente disto, enquanto experimenta uma particular alegria e uma satisfação interior ao colocar essa energia ao serviço de uma prancha. Talvez porque essa força seja espiritual, uma força divina em produção pela natureza ou por Deus desde há muito tempo.  Fará sentido distinguir natureza ou Deus?

 

 


Apenas isto: ao longo de anos, a associação com Ondas de todos as formas, aliada a uma formação religiosa, convenceu este velho surfista de que natureza é sinónimo com Deus. O vocábulo natureza, para todos os efeitos, pode ser usada com uma alternativa ao vocábulo Deus, para obter uma melhor compreensão da vida, da vivência e da ondulação oceânica, como parte de um plano do Todo-Poderoso e, assim, respeitar a sua misteriosa energia.

A mesma fórmula é aplicável a todas as coisas. Cada uma contem um pouco do poder divino, que a sustem, seja um átomo, uma Onda ou um homem.

Para corroborar este conceito de “Natureza de Deus” temos de analisar as Ondas. As suas moléculas são compostas por átomos específicos. Duas partes de hidrogénio e uma parte de oxigênio. Uma simples e pouco complicada molécula. Os físicos sabem que todos os átomos têm uma natureza complexa que ainda os desafia e guardam segredos. Cada um tem, dentro de si, um princípio divino, uma particular daquela vasta massa e energia do universo.


Cada molécula de água, e há biliões na mais pequena Onda, é um modelo de ordem, harmonia e ritmo. Assim, o átomo torna-se um algoritmo para a lógica e a forma correta de avaliar a Onda assim como todos os problemas da vida.

Por isso não será de estranhar que o surfista obtenha tanto prazer em surfar uma Onda. Por um curto período de tempo ele usufrui desta energia divina. Podemos afirmar que surfar é uma oração de alto nível, o mar é uma bela igreja e que a Onda é um sermão silencioso. As tradições ancestrais do Havai dizem que eles sentiram o mesmo. Eles demonstram grande consideração pelas suas pranchas, canoas e o ofício da pesca. Quando lhes perguntam sobre a origem pela ondulação de tempestade, eles respondiam: “Elas vêm de um lugar distante, não sabemos de onde”.

 

Hoje em dia, graças à tecnologia meteorológica e às comunicações, sabemos que a ondulação de tempestade é provocada pela energia criadas pelo vento, terramoto, atividade vulcânica submarina e intensificada pela força gravitacional da lua. Estas Ondas viajam por milhares de quilómetros, desde a sua origem, até que esta reação seja interrompida por uma massa de terra. O vocábulo reação tem o mesmo significado de “Ação/Reação” ou no sentido bíblico de “Semear/Colher”. Isto significa que a energia das Ondas é sujeita à distorção de forma e lugar, mas mantendo sempre uma estrutura atómica que nunca é completamente perdida por Deus ou pela Natureza.

Esta é a prova irrefutável da verdade da imortalidade de Cristo ou quanto à vida eterna provada pela Vida, Morte e Ondas. O mesmo sucede com os átomos enquanto massa e energia que compõem a humanidade.O átomo é parte da Natureza e de Deus, independentemente da raça ou credo, o que lhe fornece dignidade acima de qualquer medida.

Do ponto de vista da saúde, a prática de Surf é construtiva se feita de forma correta. Para a mente, inicia a sabedoria da paciência, a arte de aguardar pelo momento certo para agir porque não é possível surfar uma Onda que ainda não chegou. Assim também como a Vida.
Há um tempo e lugar certo para tudo. Nada de bom ou correto ocorre contra estas regras.  Isto, por seu turno, diz nos para aceitar as vicissitudes da vida como são, como uma inevitável reação de matéria e energia, Natureza, Deus e Ondas.

Fisicamente, a remada e a natação associadas ao Surf são apelativas para os mais novos, especialmente pelos rapazes e raparigas adolescentes, a julgar pela popularidade desta atividade nas últimas duas décadas no Havai, Austrália, Africa do Sul, América do Sul, França, Inglaterra e Japão.
O Surf também contem em sim mesmo um fator de risco que fornece um respeito saudável pelas Ondas. Elas podem ripostar, as vezes com força mortal, se o surfista cometer um erro grave ou negligenciar o seu poder escondido.
O mesmo princípio aplica-se à nossa vida: respeitem as regras e orientações e desfrutem da viagem. Desrespeitem a natureza interna ou divida de algo e colham a desolação e dor que a acompanha.

Numa prancha, quer a surfar, que a remar, somos verdadeiramente livres das restrições da terra. Naquele momento, o surfista é o capitão do seu destino no seu barco miniatura.
As exigências da cidade, escola, trabalho, assim como as preocupações da mente, são apagadas e esquecidas até que voltem a acumular. Nessa altura o remédio é obvio. Ir surfar!
Da próxima vez que saírem da costa para surfar, olhem e escutem a voz da Onda, a voz da Natureza e pode ser que ouçam o tambor bater. Todos os que o ouviram dizem que ele clama “Tudo esta bem”.”

 

Bibliografia
Brown, Drew Kampion Bruce. 1997. Stoked - Uma História da Cultura do Surf. Lisboa : Taschen, 1997.
Housman, Justin. 2020. Adventure Journal. Adventure Journal. [Online] 01 de 04 de 2020. [Citação: 17 de 11 de 2020.] https://www.adventure-journal.com/2020/04/tom-blake-taught-us-what-it-meant-to-be-a-surfer/.
Kampion, Drew. 2020. AS RAÍZES DO SURF DEVEM SER PRESERVADAS. Surf Total. [Online] 31 de Maio de 2020. [Citação: 16 de 11 de 2020.] https://surftotal.com/entrevistas/exclusivas/item/17858-drew-kampion-fala-da-cultura-actual-do-surf.


*Por Rafael Amorim

 

Tom Blake com Duke kahanamoku

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