Kelly Slater Kelly Slater foto: Tony Heff / WSL segunda-feira, 28 fevereiro 2022 12:20

Nó de água 7 - Notas dispersas sobre o início da temporada

5 notas sobre as etapas havaianas do CT 2022, por João Valente.

 

 

O início do tour da WSL de 2022, em Pipeline e Sunset Beach, inverteu o sentido habitual do surf profissional. Abaixo seguem cinco notas sobre o que se passou.

 

 

O que há num nome?

 

Um dos efeitos colaterais da alteração do calendário terá passado despercebido a muita gente. Tendo sido mantida a tradicional etapa do WQS de Haleiwa, em Novembro, deixou desmantelada a anteriormente prestigiada Hawaiian Triple Crown of Surfing, que, verdade seja dita, já andava coxa desde o primeiro inverno sob efeitos da pandemia, em 2020, quando assumiu um formato digital, curioso do ponto de vista do marketing, mas irrelevante segundo qualquer ótica desportiva. Acontece que as designações, Pipe Masters e World Cup of Surfing, são propriedade intelectual da Vans, patrocinadora da Triple Crown, que não tendo chegado a acordo com a WSL sobre a utilização dos nomes, obrigou a que as provas tenham sido feitas sob os nomes Billabong Pro Pipeline e Hurley Pro Sunset Beach.

Uma das mais famosas frases de Shakespeare vem da peça Romeu e Julieta: “O que há num nome? Aquilo a que chamamos rosa, mesmo com outro nome, cheiraria igualmente bem.” No entanto, não deixa de ser um corte numa longa tradição de campeonatos e vencedores. Com a vitória de Kelly Slater — já lá iremos — o troféu acabou por ir parar às mãos de alguém que por outras sete vezes tinha sido coroado como Pipe Master, mas fosse outro qualquer, essa designação teria de ficar, pelo menos oficialmente, de fora. É um valor meramente simbólico? Claro, mas os poderes simbólicos têm uma importância que muitas vezes não se nota à primeira.

 

 

 

Naked Lunch

 

Pode me ter escapado, mas outra tradição do surf profissional que, se não caiu, passou-me despercebida, foi a do banquete de coroação dos campeões do mundo. Realizado em diferentes sítios da ilha de Oahu após a última etapa da temporada, mas já há bastante tempo com lugar num hotel de Surfers Paradise, na Austrália, aquando da abertura anual do circuito, a cerimónia oficial de entrega dos prémios era uma ocasião de pompa e circunstância que reunia surfistas, promotores, patrocinadores oficiais e jornalistas especializados, numa grande, e sempre bem regada, confraternização. Durante essa celebração, onde os agentes do surf profissional congratulavam-se mutuamente por serem os donos do mundo que haviam erguido, tiveram lugar situações inesquecíveis, entre o hilário, o embaraçoso e o francamente emocionante. Um jovem Kelly Slater, em 1992, a pedir a todos que se levantassem e cantassem com ele o hino americano — poucos o fizeram — e a homenagem aos campeões do mundo da era IPS, saltam-me agora à memória, mas há muitos outros..

O mundo do surf profissional mudou muito desde essa altura. Naqueles meandros, pejados de wokism e sustentado quase exclusivamente na fortuna de um indivíduo para quem, há pouco mais de uma década, o surf não passava de um cartão postal vendido nos quiosques dos mais luxuosos hotéis de Honolulu, se tanto, já não existem os motivos de celebração que havia nos idos anos 90, quando os sonhos mais desvairados e ambiciosos da geração Bustin’ Down the Door, de Tomson, Rabbit e MR, pareciam destinados a ser cumpridos pela geração clean-cut de Slater e companhia, que passaria à história como Momentum Generation. Esses sonhos, alimentados pela pujança de uma indústria cujos produtos eram procurados por uma multidão de jovens que os consumia como água no deserto, já não se sustentam.

 

 

 

 

"A estratégia errática da malta de San Clemente é (...) um laboratório de tentativa-e-erro onde as tentativas se sucedem e os erros vão sendo remediados."

 

 

 

 

São anos de operação deficitária, de corporativismo atávico e de perda de identidade, a que se veio juntar a porra da pandemia... O fator olímpico, celebrado por Erik Logan como o grande maná, ainda não se traduziu em resultados concretos e, neste momento ainda não é certo se alguma vez tal irá suceder. Também não é claro se o poder repartido com a ISA irá beneficiar a operação ou esvaziá-la. A estratégia errática da malta de San Clemente é menos um caminho definido com um fim à vista do que um laboratório de tentativa-e-erro onde as tentativas se sucedem e os erros vão sendo remediados. A recente decisão de terminar com o departamento de produção de conteúdos, anunciado há três anos como a materialização visionária de um CEO oriundo do mundo dos conteúdos televisivos com o selo de sucesso Oprah Winfrey, é só mais um sinal de que ali, o que hoje é anunciado como projeto, amanhã é esquecido como dejeto e não se fala mais nisso. Diante do manancial de hesitações, de passos em falso e de incapacidade para rentabilizar o produto e as audiências anunciadas, é compreensível que não haja espaço para celebrações e banquetes. Mas se calhar até foi por causa do distanciamento social.

 

 

 

O Regresso do Rei

 

“Aqui, finalmente, chega ao fim a nossa irmandade. Não vos direi que não choreis, porque nem todas as lágrimas são um mal.” A frase é proferida por Gandalf, no fim da trilogia Senhor dos Anéis, e é irresistível citá-la a propósito do desempenho de Kelly Slater em Pipeline. Já muita tinta correu sobre a performance do nosso rei particular, pelo que não vale a pena fazer eco das loas já repisadas à exaustão sobre o triunfo (mais um!) em Pipe, nem dos lamentos sobre o fracasso (mais um!) em Sunset. Gostava só de reafirmar que, de todos os destinos programados para o tour este ano, dado o historial competitivo e o nível de exigência técnica, Pipeline, a par de Teahupoo, era o mais óbvio para ser conquistado por um surfista de 50 anos quase feitos. Muito mais óbvio do que, por exemplo, Trestles.

 

 

 

 

"A escolha da localização para a grande final (...)

tem esse efeito perverso de praticamente tornar irrealizável

o que seria uma das mais emocionantes histórias já vistas no desporto."

 

 

 

 

E isso é importante porquê? Ora, porque, a despeito do fracasso em Sunset, o calendário de 2022 parece feito à medida de vermos concretizar o sonho impossível de vermos o maior competidor da história do surf conquistar mais um título mundial aos 50 anos. No entanto, o atual formato do circuito obriga-nos a pôr mais ênfase no impossível do que no sonho. É que se Pipeline, G-Land e Teahupoo apresentam hipóteses razoáveis para Slater estar presente no top 5 ao fim do ano, só com uma grande dose de crença poderemos antecipar uma vitória sua em Trestles. A escolha da localização para a grande final, justificável sob alguns prismas, criticável sob muitos outros, tem também esse efeito perverso de praticamente tornar irrealizável o que seria uma das mais emocionantes histórias já vistas no desporto. Em qualquer desporto, mesmo diante da irrelevância do surf nesse campo. E esse fato tanto representa o fim definitivo de uma era, como justifica todas as lágrimas — dele e nossas — vertidas no pós-Pipe.

 

 

Kelly Slater e Seth Moniz. foto: Brent Bielmann / WSL 

 

 

 

Queríamos as mulheres pelos tubos, tivemo-las pelo cano

 

 

Já elogiei bastas vezes a linha evolutiva do surf feminino. Já afirmei que, sob determinadas condições, prefiro ver algumas mulheres — Gilmore e Carissa, sempre, Bettylou mais recentemente — do que muitos homens. Já advoguei que na plataforma do Rancho, até faria sentido uma prova mista. Mas torci o nariz à estreia feminina em Pipe ao nível de CT. O resultado não fugiu uma vírgula ao que os olhares mais realistas, não contaminados pela obsessão igualitária, previam.

 

 

 

 

"Não pode haver espaço nem para visões misóginas

nem para olhares condescendentes.

(...) São duas faces da mesma moeda."

 

 

 

 

Diante do expectável mau desempenho geral das melhores do mundo na mais perigosa onda do circuito, por um lado, e do providencial evitar dos dias mais pesados, por outro, surgiram duas tendências dominantes: o escárnio mais primário, impiedoso e, sim, muitas vezes misógino, ou o olhar condescendente, relativista e benevolente. Nenhum é justo para com a classe feminina de surf, que tanto evoluiu e tanto conquistou nos últimos anos.

Quando se fala de desporto ao nível de elites, não pode haver espaço nem para visões misóginas nem para olhares condescendentes. Nem se pode criticar atletas de alto nível pelo seu género, nem se deve ser indulgente pelo mesmo motivo. São duas faces da mesma moeda. Ora, o World Tour apresenta-se, com toda a justiça, como o espaço do surf de elite. Os(as) melhores do mundo, nas melhores ondas, lembram-se? Não é os(as) melhores do mundo nas melhores ondas, desde que não esteja muito perigoso. Em 2012, os homens do Tour foram amplamente criticados quando optaram por não surfar num dos melhores dias de que há memória em Cloudbreak, Fiji. Porquê deveremos ser menos exigentes baseados no género?

Não sou contra as mulheres competirem em Pipeline, mas não concordo que um WCT seja a melhor forma de começar. Pipeline é um caso particular pela competitividade do pico, um obstáculo evidente a uma rápida aclimatação e evolução de qualquer um, para mais de uma mulher. Um campeonato, nesse sentido, parece uma boa medida. Mas se o objetivo é proporcionar às mulheres a hipótese de surfar Pipeline num line-up livre de testosterona, porque não começar por um WQS? O campo de competidoras mais alargado permitiria que não só as dezoito privilegiadas do CT usufruíssem da oportunidade, mas também todas as aspirantes à elite. As vantagens seriam claras. Um número maior de mulheres a surfar em Pipeline em formato WQS durante alguns anos, iria resultar numa elite mais experiente e preparada quando se decidisse fazer o upgrade do evento. A exposição mais limitada de um WQS evitaria os embaraços trazidos por situações como desempenhos gerais abaixo do exigível a uma dita “elite” ou o confinamento da prova feminina a condições mais fáceis ou convenientes.

 

 

Carissa Moore. foto: WSL / Tony Heff

 

 

Conheço bem os contra-argumentos: já houve homens com prestações medíocres em Pipeline. Sim, em Pipeline e em qualquer lado. Prestações abaixo da média são comuns em todos os desportos, mas quando isso acontece, excetuando quando as análises embatem na muralha de ruído positivo dos comentadores oficiais da WSL, tais performances são notadas e devidamente criticadas, sem a complacência e relativização que se viu neste Pipe Mistress, tanto por parte da maioria de comentadores como dos juízes. O desporto dito de elite, não se pode coadunar com indulgências nem com aprendizados em tempo real.

Outro argumento é o de que um CT, pela sua própria exposição, serve de exemplo para atrair um maior número de mulheres para surfar em Pipeline. Não duvido. Mas enquanto as privilegiadas (por mérito próprio, é verdade, mas ainda assim privilegiadas) podem usufruir da possibilidade de surfarem o line-up mais disputado e perigoso do planeta com somente as suas rivais na água, já as miúdas inspiradas pelo exemplo são obrigadas a enfrentar a matilha de lobos do free surf, arriscando o orgulho e a pele para apanharem os restos dos sets. Este principiar pelo topo parece-me uma clara inversão da lógica.

Enfim, está feito e as mulheres têm o seu espaço em Pipeline. Inevitavelmente, com o tempo irão evoluir e daqui a algum tempo veremos as surfistas do CT nivelarem o seu surf ao da inexperiente wildcard Moana Jones Wong que, sendo basicamente uma free surfer com pouco interesse nas competições fora do seu quintal havaiano, derrotou de forma humilhante aquelas que são promovidas junto ao público e aos patrocinadores como sendo as “melhores do mundo”.

 

 

 

You can't script this

 

Ao fim das duas provas iniciais do circuito, temos uma situação caricata. Nenhum dos top 5 do ano passado ocupa qualquer das primeiras cinco posições do ranking este ano. Só um — Felipe Toledo — está no top 10. A seguir a ele, temos de descer até à 16ª posição para encontrar Ítalo Ferreira e até à 27ª para ver Conner Coffin. Gabriel Medina esteve ausente e Morgan Cibilic fez-se de ausente. No lado feminino a coisa surge mais composta, com a campeã Carissa Moore no 4º posto seguida de Johanne Defay no 5º. Tatiana, Sally e Gilmore ocupam a cauda do pelotão do top 16. Mesmo baixando muito o nível de expectativa, não deixa de ser surpreendente.

 

 

 

 

"Logan e seus comerciais têm razões para, aquando da sua estadia em Portugal,

irem a Fátima pedir pelo regresso rápido de Gabriel Medina."

 

 

 

 

Diante da cada vez mais próxima e inevitável reforma da sua maior referência — sim, ele mesmo — parece evidente que não ter superestrelas de envergadura a disputar títulos é um problema. É expectável que John John se recomponha da desilusão destas primeiras etapas e recupere para estar presente em Trestles, mas Logan e seus comerciais têm razões para, aquando da sua estadia em Portugal, irem a Fátima pedir pelo regresso rápido de Gabriel Medina. Nem um nem outro têm o carisma dos grandes ídolos do passado. Mesmo Medina, que será o primeiro caso da história do surf profissional a ter a sua própria torcida — há muitos que seguem Gabriel, não seguem o circuito — não reúne consenso entre o público core das provas da WSL para constituir uma superestrela inatingível com a aura de um Fanning, um Irons ou um Slater. O surf profissional atravessa a sua fase de nomes mais palpáveis, mais mundanos. Não é o melhor momento para uma estratégia de comunicação toda ela montada sobre a criação de estrelas.

Talvez isso seja mais um sinal de que esta nossa atividade não se integra nas lógicas massificadoras de outros desportos. Mas isso será assunto para outras calendas, que agora é hora de fixar os olhos em Peniche e desejar que Supertubos surja ao nível de Pipe e Sunset. Mesmo porque quanto a isso não há dúvidas: nada como altas ondas para fazer os problemas desaparecerem, o mundo brilhar e toda a gente sorrir. Isso é o surf. E o surf não se pode prever.

 

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