A primeira vez que Tom Curren surfou Jeffrey’s Bay, em 1992, ainda hoje a referência de como surfar bem esta onda. A primeira vez que Tom Curren surfou Jeffrey’s Bay, em 1992, ainda hoje a referência de como surfar bem esta onda. Foto : Sonny Miller sábado, 14 maio 2022 12:40

Tom Curren, o expoente máximo do surf como arte performativa

99% das vezes Tom Curren está no topo da lista dos melhores surfistas de sempre...

 

 

“O boxe é um desporto puro. Arte pura é a pintura. O surf está algures no meio”

 

 

Encontrei a frase acima numa entrevista do Curren de um número de 1991 da revista Surfer. Para mim, é uma excelente descrição do surf.

Quando se faz uma lista dos melhores surfistas de sempre, por muito subjectiva que seja, noventa e nove por cento das vezes Tom Curren estará no topo dessa lista, se não mesmo no primeiro lugar –  eu o poria no primeiro lugar, empatado com o Kelly Slater.

Durante o período entre 1985 e 1995, todos queriam imitar o seu estilo muito próprio : pé da frente num ângulo de 90 graus, joelho esquerdo abaixado e apontado para a frente, o “double-pump bottom turn”. Uma técnica de surf afinadíssima, combinando graça e suavidade, que dissimulam o “power” do seu surf. Todos os grandes surfistas daquele tempo - Kelly Slater, Mark Occhiluppo, e tantos mais - admitiam que Curren era o modelo.

 

 Curren em 1985 com uma Black Beauty. Modelo icónico, ainda hoje produzido pela Channel Island. Foto : Joli

 

 

“Todos estamos poluídos e pervertidos por sermos surfistas profissionais ou por trabalharmos na indústria do surf. (..)

É como ter um pólipo de grande dimensão. Tens de te questionar se consegues viver com esse pólipo. Se consegues, muito bem”.

 

 

Influência consolidada e comprovada com os resultados competitivos. Em 1985 tinha sido o primeiro campeão do mundo norte-americano (desde os inícios do circuito mundial, em 1976). Mais importante : era oriundo da California, o centro do mundo de surf, onde as tendências e modas era criadas e espalhadas por todo o mundo. Voltou a conquistar o título mundial em 1986 e em 1990. Neste ano conseguiu um feito inédito e irrepetível – venceu o título, tendo que correr os “trials” de eventos (nos anos anteriores, competia a “meio-gás”, prenúncio da retirada da competição). Seria como se hoje em dia, um surfista vencesse a Qualifying Series, também a Challenger Series e ainda o World Tour, tudo num único ano. Nota : em 1990 venceu a etapa de Ribeira de Ilhas, na Ericeira.

Nesta altura, o principal barómetro da popularidade era a tabela da revista Surfer – a Surfer Poll – que Curren venceu durante oito anos seguidos, de 1985 a 1992. Mas o mais extraordinário nesta notoriedade é ele ser um indivíduo excepcionalmente introvertido e recolhido. São “lendárias” as dificuldades dos entrevistadores em tirar dele algumas palavras. Nunca se sentiu confortável com a fama. Evitava eventos sociais e promocionais.

No entanto, quanto mais fugia da celebridade, mais popular era.  É essencial realçar que nesta altura havia uma forte corrente anti-competição e anti-profissionalismo, com muitos “puristas” que defendiam que o surf seria um estilo de vida alternativo, uma forma de arte com a natureza e que, portanto, a competição e o profissionalismo conduziriam à perversão do surf. E aqui chegamos a mais um paradoxo do Curren : por um lado, altamente competitivo (só assim é que se conquista três títulos mundiais); mas por outro, não escondia o seu desconforto, e mesmo aversão, com a competição, chegando mesmo a afirmar numa outra entrevista também à Surfer, em 1996, que “nós todos estamos poluídos e pervertidos por sermos surfistas profissionais ou por trabalharmos na indústria do surf. (..) É como ter um pólipo* de grande dimensão. Tens de te questionas se consegues viver com esse pólipo. Se consegues, muito bem”.

*Tumores benignos, frequentemente no intestino

 

 

"A partir de 91 começa a afastar-se da competição, dedicando-se a viagens e à música,

até afastar-se definitivamente por volta de 1992, com 28 anos..."

 

 

 

 

Capa da edição VHS

 

Searching for Tom Curren:

Temos agora uma excelente oportunidade para conhecer melhor (ou pela primeira vez…) o Tom Curren, com o lançamento da versão digitalizada do filme Searching for Tom Curren, disponível via streaming aqui.

Publicado em 1996 no âmbito da série de filmes de viagens produzidos pela Rip Curl para a sua campanha de marketing “The Search”, uma das mais populares de sempre no mundo do surf. A essência desta campanha era a procura por novas ondas, particularmente na Indonesia, zona ainda pouco explorada naqueles tempos. Devido às tiragens limitadas da versão original em VHS, e às dificuldades com os direitos das músicas, quem o possuía guardava-o como tesouro de valor incalculável.

Centrado  no Tom Curren, percorre a sua evolução desde a infância e adolescência, em que já era considerado um “prodígio”, até à fase em que vai evoluindo para uma abordagem mais “soul”, mais focada no surf como auto-expressão, como arte performativa, uma dança com o oceano.

Nesta altura ainda era um surfista influente, embora já não tanto como nos meados dos anos 80 e inícios dos anos 90 –  Kelly Slater tinha iniciado a sua primeira fase de dominação do surf, seja conquistando 5 títulos consecutivos (de 1994 a 1998), seja tornando-se no surfista mais popular de sempre, particularmente no mundo exterior ao surf.

Este filme apresenta-se como contraste com os filmes mais populares da altura, nomeadamente com os Momentum I e II, focados numa abordagem “fast action loud music”, com ênfase em manobras rápidas, realizadas por um bando de miúdos, liderado pelo Kelly Slater, e baptizado como “Momentum Generation”. Tudo  acompanhado pelos sons estridentes do punk rock da área de Los Angeles, de bandas como os Bad Religion, Pennywise, entre outras. Neste contexto, o Searching for Tom Curren destaca-se pela calma e serenidade, modeladas pelo próprio personagem.

O que faz o seu sucesso  e transforma-o num dos filmes clássicos de surf, são as sessões de surf. Mostram-se novas ondas (embora não revelando nomes nem localizações), e principalmente abordagens originais para a altura. Um dos momentos mais importantes é o recurso a uma fish 5’7”com multi-canais para surfar ondas de consequência, em recifes rasos na Indonesia.

 

 
Numa 5’7”

 

 

 

"Curren tinha evitado a África do Sul , em protesto contra o regime racista"

 

 

Outro ponto alto do filme é a sua primeira sessão de sempre em Jeffrey’s Bay, na África do Sul. Até 1992, Curren tinha evitado a África do Sul , em protesto contra o regime racista. Ainda hoje esta sessão é considerada como a referência em relação à qual todos os outros surfistas são comparados – ver link para vídeo mais abaixo.

 

Tom Curren e Jeffrey’s Bay – Duas lendas. Foto : Sonny Miller

 

Para quem deseja ver surf feito arte

Outro destaque é a participação no Wyland Pro em Haleiwa, em 1990, única prova que o Curren venceu no Hawaii. Esta vitória tornou-se icónica (e polémica), pois ele usou uma prancha sem logos de patrocinadores. Na altura muitos aplaudiram porque entendiam que se trataria de uma afirmação contra a comercialização do surf. Embora a verdade provavelmente seja mais prosaica – ele não tinha autocolantes para colocar. O seu principal patrocinador, Ocean Pacific (OP), escandalizado, rescinde o contrato, mas a Rip Curl percebe a oportunidade, e renova o contrato com um valor superior. Relação que se mantem ainda hoje, com alguns intervalos ao longo dos anos.

O Searching for Tom Curren é um bálsamo para os nossos olhos e alma. Neste filme curto, com cerca de trinta e sete minutos, vemos um artista a pintar sobre ondas. É também um antídoto contra a banalização  que o surf hoje sofre. Para quem deseja ver surf feito arte.

Podes ver aqui o trailer para a versão em streaming, aqui o vídeo de Tom Curren em Jeffrey’s Bay e aqui o vídeo de Tom Curren em Bawa, Indonesia, numa Fish 5’7”. 

 

*Por Pedro Quadros

Itens relacionados

Perfil em destaque

Scroll To Top