Uma crónica de João 'Flecha' Meneses, pela Indonésia. Uma crónica de João 'Flecha' Meneses, pela Indonésia. Foto: João Bracourt quinta-feira, 07 maio 2015 08:45

João 'Flecha' Meneses: Surf - uma arma da Paz

"Ambos tínhamos uma sentença à nossa espera. Ele, a prisão, seguido de um serviço militar exigente com grandes probabilidades de estar numa qualquer linha de frente de batalha, onde a morte e a vida sentam-se frente a frente, num permanente jogo de xadrez. E eu? Acho que tinha melhor sorte, mas não era por isso que estava mais animado. Um trabalho em frente a um computador, 22 dias de férias por ano e um novo paradigma de vida como rapazinho crescido"




Foi em Setembro de 2002 que conheci o Judah. Era um rapaz pequeno e franzino, com um estilo meio eléctrico em cima da prancha mas um bom surfista. Falámos pela primeira vez pisando a bancada de coral de Grajagan, na Ilha de Java. Ele terminava a sessão de surf com aquele ar de veterano de quem já ia com 3 dias de experiência, enquanto eu, meio perdido e sozinho, ia aventurar-me pela primeira vez naquele santuário de ondas que, até então, só conhecia pelas revistas e pelos filmes.

-Vês aqueles ali? - apontando para os ouriços gigantes - Não penses que isto é só coral bonito. Há armadilhas por todo o lado. Boa sorte!


Uns dias antes tinha-se desentendido na água com um grupo de irlandeses e foram uns bodyboarders portugueses que por ali andavam num surfcamp vizinho que vieram em seu auxílio. Nós, sempre nós, um povo de brandos costumes, capaz de fazer amigos em todo o lado e até de mediar conflitos dentro de água, numa baía perdida rodeada de vida selvagem. A atitude dos portugueses fê-lo aproximar-se de mim e escolher-me como o seu melhor amigo no surfcamp. À noite, após o jantar, sentados num sofá desfeito em farripas e a olhar uma televisão vintage, provavelmente das primeiras na Indonésia, onde Gerry Lopez brilhava dentro dos tubos, Judah explicava-me que esta era a sua grande viagem de surf. Como jovem israelita tinha que cumprir cerca de 3 anos de serviço militar e por isso decidira fugir. Quando voltasse a casa seria castigado.

- O meu nome está na lista e quando aterrar em Tel Aviv vou directo para a prisão. Serei um preso feliz, desde que esta viagem me acompanhe na memória.


Uma realidade bem diferente da minha. Estava no último ano da universidade e já em reserva territorial, o mesmo que dizer que as botas da tropa não iam encaixar os meus pés de Cinderela. O meu “serviço militar” tinha sido na praia, descalço, com um uniforme encarnado e foleiro, acompanhado de um leque de armas, onde constavam uns pés de pato, um apito, uma bóia torpedo e a minha prancha de surf. Era um soldado sem grandes medos, dominava o meu território de batalha como só um surfista pode dominar. Não premia gatilhos, era remunerado e fazia uma viagem no final do verão, carregando na mochila aquele orgulho de jovem perante uma efémera autonomia financeira, que me permitia escolher qualquer destino sem prestar contas aos meus progenitores. Bem, mas a verdade é que em breve iria ser chamado para o meu primeiro emprego a sério, daqueles que diziam ser para a vida e com seguro dentário, por isso tal como o Judah, eu queria conhecer melhor a Indonésia e realizar o sonho de surfar  G. Land.



Ambos tínhamos uma sentença à nossa espera. Ele, a prisão, seguido de um serviço militar exigente com grandes probabilidades de estar numa qualquer linha de frente de batalha, onde a morte e a vida sentam-se frente a frente, num permanente jogo de xadrez. E eu? Acho que tinha melhor sorte, mas não era por isso que estava mais animado. Um trabalho em frente a um computador, 22 dias de férias por ano e um novo paradigma de vida como rapazinho crescido, onde as camisas e as lâminas de barbear iam ganhar terreno aos calções e ao protector solar. No fundo éramos dois surfistas condenados! Ele mais do que eu.


Durante a minha estadia na selva de Grajagan com perfeição em abundância para tão poucos surfistas, eu e o pequeno Judah íamos alicerçando uma amizade. Partilhávamos os nossos medos de um futuro com menos surf. Ele dizia-me que não queria regressar a casa sem surfar a onda de Nias, em Sumatra, mas dizia-me também que o seu passaporte israelita podia ser sinónimo de problemas. Apesar de não conhecer a região aconselhei-o a ir, sabia que Nias já recebia surfistas estrangeiros desde o final da década de 70 e certamente que ele não seria o primeiro israelita por aquelas bandas. Disse-lhe que o turismo abria mentalidades, proporcionava a fusão de culturas e também de interesse financeiros que atenuavam radicalismos religiosos ou animosidade entre nações e, rematava:

- Judah, sei que não sou a pessoa mais experiente para te falar de conflitos religiosos ou guerras diplomáticas, mas acredito há pessoas boas e más em qualquer parte do mundo. E as boas são a maioria!


Os meus 4 dias em G. Land tinham chegado ao fim e a semana do Judah também. Juntos fizemos a longa viagem até Kuta. Tínhamos combinado ficar uns dias por lá, onde não haveria grandes tentações de surfar pela qualidade das ondas. Descansávamos o corpo de tantas horas de surf e cada um definia o seu itinerário para os dias que ainda nos restavam. Sem avisar, a febre atacou-o de forma galopante. Acompanhei-o ao hospital durante vários dias, faziam-lhe o despiste da malária, mas julgo que as febres resultavam dos profundos golpes que a sua carne sofrera na bonita e agressiva bancada da baía selvagem. Não ficou para saber o resultado. Os delírios fizeram-no sentir vulnerável e as saudades de casa falaram mais alto. Regressou a Israel prometendo que um dia iria visitar a onda de Nias.



Nunca mais tive notícias do Judah. Gosto de lhe traçar um percurso de vida nos últimos 13 anos. Cumpriu a pena, fez de tudo para não ser colocado em frentes de batalha e não matou ninguém pelo seu País. Trabalhou na cozinha do quartel ou abrilhantou as jantes das chaimites de museu. Mais tarde, concretizou o sonho de surfar em Nias e fez amigos muçulmanos.


Gosto de imaginar que o Judah é um embaixador da Paz e sempre que pode envia algumas das suas pranchas aos jovens palestinos da Faixa de Gaza. Apesar de uma fronteira fortemente armada a separá-los não deixam de partilhar as mesmas ondulações do mediterrâneo. E, sabendo por razões históricas da dificuldade de um dia haver paz em Terra, pelo menos que a possam encontrar dentro de água, naqueles segundos de silêncio em que deslizam numa onda. Sem bombas, sem sirenes. Sem ódios! 

 

João “Flecha” Meneses

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