SLATER, UM CAMPEÃO COM MEMÓRIA WSL sexta-feira, 27 fevereiro 2015 16:01

SLATER, UM CAMPEÃO COM MEMÓRIA

Crónica de João 'Flecha' Meneses, onde se fala de Donavon Frankenreiter, Michael “Munga” Barry, Kelly Slater e de arte...

 

 

Já muito se falou da beleza do bottom turn. Se Van Gogh fosse vivo e continuasse com vontade de se inspirar em aldeias piscatórias, mais tarde ou mais cedo encontraria surfistas e provavelmente Donavon Frankenreiter estaria numa das suas telas.


Van Gogh iria certamente traçar mais movimentos nas ondas. Se eu lhe pudesse falar de um outro que exige tanto ou mais comprometimento, e de igual beleza, falar-lhe-ia do drop! Quanto mais difícil mais arte vejo nele. Um corpo de braços esticados, olhos abertos ou fechados, coração que pára, pulmão que enche, loucura que beija instinto. Pés que se agarram a um tapete voador em direcção ao abismo. Eis o drop, Sr. Van Gogh! Pinte-o!


Foto: D.R.

Um movimento que decide tudo! O sucesso do insucesso, o belo do feio, a continuidade ou o final da estrada.

Esperem. Releiam o parágrafo de cima. Há qualquer coisa que me soa mal… Deixei-me levar pela intensidade e, perdi-me…

O sucesso do insucesso? O belo do feio? A continuidade ou o final da estrada?


Estava a ir pelo caminho errado. O drop tem beleza seja qual for o resultado! É a vontade de ir, a liberdade de remar.

Descer uma onda no lugar certo pode eternizar-te na história de uma praia ou colocar-te na capa de uma revista. Mas não é por isso que o deves fazer. Há drops corajosos por esse mundo fora e nem sempre registados por máquinas de filmar ou de fotografar. Há drops que não consegues realizar. Não é vergonha nem fracasso. É arte! E nela não há sucesso ou insucesso.


Michael “Munga” Barry, um surfista australiano brilhante que esteve 12 anos no WCT (Tour com os 44 melhores do mundo) é um afortunado por ter falhado e completado os drops mais intensos da história do surf. Penso que a razão dessa atitude não era pelo prémio mas sim pelo desafio, a recompensa interior. O seu momento de fama foi numa onda com mais de 12 pés e um vento offshore tempestuoso, na praia de Sunset Beach - Hawaii, 1993. Dropou o impossível e surfou a onda até ao final. Dentro de água, tinha como seu adversário um jovem de nome Kelly Slater que por ali andava já com um título mundial e que não se fez à onda por achar que era uma loucura só de pensar em ir.


Foto: Art Brewer

No seu segundo livro, For The Love, Slater dá um destaque a essa onda, dizendo que é uma das suas fotos favoritas de surf. Conta-nos ainda, que Brock Little, um dos maiores big wave riders hawaianos, ao ver o Munga a remar atrasado e a cair numa onda enorme e perfeita em Cave Rock, na África do Sul, pergunta-lhe:

Porque é que fizeste aquilo? Não tinhas qualquer hipótese!

Resposta do Munga: Eu tinha que tentar…

Por vezes precisamos de encontrar coragem para descer ondas. Precisamos de olhar os nossos medos, escrevê-los, falá-los e ouvi-los de uma outra forma. Precisamos de afectividade nas letras, de cor no alfabeto. Palavras que nos soem bem!

Luís Sepúlveda, escritor chileno, diz-nos:

“Alos chilenos nos gustan los diminutivos, quizá porque vivimos en un país demasiado grande, somos pocos y la calidez de los diminutivos nos hace sentir menos solos. Todo Carlos es un Carlitos…”

Talvez o nosso maior poço de coragem contenha água salpicada de diminutivos. Com eles, torna-se mais fácil sairmos da nossa zona de conforto. Uma ondinha e um swellzinho, em vez de um vagalhão e um swell enorme.

Não sei se o Munga Barry alguma vez surfou no Chile e também não sei se aplica muitos diminutivos nas conversas que tem com os seus jovens alunos da Gold Coast. Mas sei que a sua coragem cruzou-se no caminho de dois verdadeiros artistas, Jack MacCoy e Peter ”Joli” Wilson, que tão bem registaram os seus dropezinhos.

Kellyzinho agradece.

 

João 'Flecha' Meneses

 

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