JOÃO GARCIA NO NOSSO QUINTAL

"As letras que lia no telemóvel eram da autoria de um dos maiores alpinistas de todos os tempos. João Garcia, o primeiro português a escalar o Evereste"...

 

 

Naquela manhã acordei nervoso e pensei em árvores altas e centenárias. Daquelas que estão lá durante toda uma vida, como as montanhas. Lembrei-me da nogueira da casa dos meus avós, foi nela que comecei a sentir o risco, a testar os meus limites. De dia para dia ia subindo mais alto, até chegar aos ramos mais fracos lá de cima, onde os movimentos tinham que ser lentos, pensados, onde a técnica e a coragem precisavam de se abraçar. A velha nogueira reaparecia agora na minha memória. Não me preparava para nenhuma sessão de surf num pico desconhecido, nem olhava um mapa com ondulações que me fazem tremer.

 

Olhei pela janela e vi que o chão da rua denunciava que a noite tinha sentido chuva. As falésias da costa da Guia estariam molhadas e escorregadias. A hibernação do sol nas próximas horas não ajudava para um cenário animador. Ouvi um som de uma mensagem, levando-me a pensar que o encontro estava cancelado.

- Talvez não dê para escalar, mas eu vou nem que seja para o pastel de nata.

As letras que lia no telemóvel eram da autoria de um dos maiores alpinistas de todos os tempos. João Garcia, o primeiro português a escalar o Evereste e o décimo homem do mundo a escalar todos os 14 picos com mais de 8000 metros do planeta. E sem recurso a oxigénio artificial. Um pequeno pormenor…

 

Cerca de duas semanas antes, através de uma amiga em comum, combinámos descer umas ondas. O João, um verdadeiro autodidacta, já tinha experimentado o nosso desporto, não era novidade para ele. Sentia-se à vontade dentro de água, não tanto como na montanha, mas lia bem o mar e mesmo falhando um ou outro take off mais difícil, surpreendia-nos com a garra com que se atirava às ondas. Um atleta, um aventureiro, um gajo com coragem para dar, vender e ainda reciclar.

Naquela manhã, o pastel de nata com chuva foram histórias de montanha, ensinamentos de sobrevivência, cordas e nós, mosquetões, arneses, roldanas, cintos de segurança, botas e agasalhos. Era a forma que ele tinha encontrado para me compensar da matinal de surf. Falar-me da sua montanha. Ensinar-me um pouco sobre as ferramentas do seu mundo. E eu, agradecido estava.

Na semana seguinte o sol acordou e voltámo-nos a reunir. Pusemos mãos à rocha e escalámos umas vias de grau iniciado e intermédio. Com a ajuda do sábio Garcia, cheguei com sucesso ao topo de algumas falésias e senti-me no alto da nogueira dos meus avós, toquei naqueles ramos que pensava apenas serem tocados pelo vento. Bem lá em cima! Um surfista a escalar com o mar em rodapé. Que manhã perfeita! Mesmo sem surf.

Já passou mais de um ano e ontem resolvi voltar à Costa da Guia e percorrer com o olhar as vias que subi. Lembrei-me do João e da sua vida perto do nomadismo, agora em constantes viagens como Guia de Montanha, acompanhando pessoas que o procuram pela sabedoria e experiencia. Não pude deixar de pensar que se ele fizesse surf certamente seria um dos melhores em ondas pesadas. Uma mistura de Greg Long e Shane Dorian, com sangue de Laird Hamilton.

Entrei na pastelaria mais próxima do mar e pedi dois pastéis de nata. Procurei um muro com a melhor vista do promontório, onde admirei as estóicas rochas que sobrevivem, inverno após inverno, às investidas do Atlântico. Com o azul à minha frente, reli uma frase de um livro deste nosso grande alpinista-himalaísta:

 

“… Somos tão pequenos quando comparados com a grandiosidade da paisagem, mas no fundo nunca nos sentimos tão grandes! Sentimo-nos livres. Estamos em Paz.”

Ergui os dois bolos e brindei aos oceanos, às montanhas, à coragem do João Garcia e dos surfistas portugueses.

Foi um brinde guloso, eu sei.

 

João “Flecha” Meneses

Itens relacionados

Perfil em destaque

Scroll To Top