"A Era do Leão" - passatempo 'Conta-nos a tua história de surf' quarta-feira, 27 outubro 2021 08:30

"A Era do Leão" - passatempo 'Conta-nos a tua história de surf'

Esta é a história de Gonçalo Santos, finalista do passatempo "Conta-nos a tua história de surf". 

 

"A Era do Leão" é uma das duas histórias empatadas no passatempo "Conta-nos a tua história de surf". Para o desempate, a Surftotal vai publicá-las separadamente e voltar a pedir a ajuda dos leitores: a história que até ao dia 10 de Novembro tiver mais visualizações únicas, e o tempo de visualização mais elevado sairá vencedora deste passatempo. O prémio é um relógio GPS Watch da Rip Curl no valor de 300€ e uma prancha Go Chill Diogo Appleton.

 

"A Era do Leão":

Naquela parte misteriosa do nosso cérebro a que chamamos memória, o período entre 1999 e 2001 ficou gravado na minha mente como a era do Leão. A chamada vida adulta ainda parecia uma coisa distante e quaisquer projectos que eu pudesse ter na altura, assentavam num misto de idealismo e inocência acerca do mundo. De alguma maneira, esta conjunção de fatores permitia que os dias de semana fossem maioritariamente inconsequentes. Os fins de semana, por outro lado, continham a possibilidade de aventura.

As cervejas consumidas na noite anterior e a hora da maré, podiam condicionar a hora da partida. Mas aos sábados de manhã, o plano não variava muito. O ponto de encontro era sempre o mesmo, junto à escola primária. Um por um, os protagonistas desta história iam aparecendo. O grupo continha punks, intelectuais e desportistas (ou melhor, era assim que nos víamos), um conjunto de personagens díspares com o surf como denominador comum. E os “leões”, claro! Dois Peugeots 106, que nos transportavam da cintura industrial lisboeta a algum ponto da costa oeste.

No porta bagagens, o material de surf ia-se misturando com o farnel para os próximos dias, formando um amontoado que, pouco a pouco, eliminava a visibilidade pela janela traseira. Respeitando os rudimentos da geometria euclidiana, com uma dose de força bruta e outra de sorte, as pranchas permaneciam atadas aos suportes no tejadilho. Antes de arrancar, entre todos, ainda era preciso juntar o dinheiro necessário para conseguir meio depósito de gasolina. Se íamos quatro num carro, com duzentos e cinquenta escudos por passageiro, tínhamos suficiente para as viagens de ida e volta. Começava então uma peregrinação que se reproduzia semana após semana.

Pelo caminho, ouviam-se mix tapes caseiras no auto-rádio. A brutalidade dos Ratos de Porão, sucedia-se do experimentalismo dos Sonic Youth que, por sua vez, se podia suceder da banda de uns amigos, que não sabiam tocar mais que os três acordes do punk. Em paralelo decorria o debate acerca de onde surfar. Enquanto uns argumentavam com a força e direção do swell, outros referiam as imagens difusas de uma webcam consultada graças a um modem de marcação telefónica e uma conexão de 28 kilobytes.

Nem sempre se conseguia unanimidade acerca do destino e, uma vez chegados à costa, podia ser necessário recombinar os passageiros. Cada carro voltava a arrancar para sítios diferentes e com as novas tripulações. Chegados ao sítio de eleição, a discussão podia-se reacender. Ironicamente, depois de ver as condições, era habitual perguntar se afinal as ondas não estariam melhores no outro sítio. Mas certa ou errada, em algum momento tomava-se a decisão de ir para a água.

Havia uma certa variação entre a habilidade natural para o surf de cada um de nós. Mas no fundo, naquela altura, éramos todos principiantes. Por outro lado, ou talvez por isso mesmo, take-off, bottom turn e o eventual cutback, eram vividos com grande intensidade.

 É certo que o material a que tínhamos acesso não ajudava muito. Pranchas funcionais e fatos em boas condições eram uma coisa rara naquela época. Mas nada disso importava e a vontade de apanhar ondas era o único imperativo.

Apesar de toda a motivação inicial, a certa altura, o frio e cansaço começavam a fazer as suas vítimas. E, progressivamente, um por um apontavamos as pranchas para a areia. Era chegada a ocasião de recuperar forças, vangloriar-nos dos nossos melhores momentos e rir-nos à gargalhada dos falhanços alheios. Eram momentos de puro júbilo e quem quer que ouvisse aqueles relatos desproporcionais, duvidaria se tínhamos passado a manhã nas ondas à frente do parque de estacionamento ou a dropar três metros e a entubar em Pipeline.

Discussões e sessões de surf deste tipo, sucediam-se ao longo de todo o fim-de-semana. Pelo meio, existiam as noites de sábado. Improvisar jantares à porta do supermercado, percorrer um roteiro de bares com álcool barato e acabar numa discoteca onde as últimas energias se consumiam na pista de dança, em tentativas de sedução de efetividade reduzida. Chegado o domingo, encolhidos num banco do carro ou no chão de algum acampamento improvisado, as horas de sono tinham sido poucas e não particularmente reconfortantes. Mas pelo  menos, íamos acordar com a expectativa de saber que as ondas estavam por perto.

Apesar do carácter subjectivo destas experiências, estou certo que elas não diferem significativamente das vividas por muitos outros surfistas. Aquilo que eventualmente as distingue, é o contraste com a nossa outra realidade, no dia-a-dia semanal. A placidez das gaivotas a percorrerem um areal deserto ou a levitar sobre as ondas de asas abertas, contra o ruído incessante dos carros a circular na nacional 10 e auto-estrada A1, imediatamente ao lado da nossa povoação. O bucólico da combinação entre praia e campo característico da costa oeste, contra os diferentes tons de cinzento provenientes das fábricas de cimento e amianto onde trabalhavam familiares e amigos.

Nos fins-de-semana, tínhamos a nossa versão de andar pela estrada fora, como os beatniks do Jack Kerouac. Vivíamos a sucessão de eventos triviais que preenchiam aqueles dias, como se não existisse nada fora desse segmento espácio-temporal. Tudo o que nos importava, concentrava-se aí e ter que interromper aquela possibilidade de aventura para regressar à nossa outra realidade, parecia conter uma dose de crueldade cósmica.

Claro que esta forma de estar só era possível porque, nesse outro dia-a-dia, existiam pessoas que garantiam comida a horas certas e um tecto sobre a cabeça. Ainda assim, quando recordo esse período, pergunto-me se é correto afirmar que tudo se resumia a um produto de idealismo e inocência juvenil? Não éramos gurus do mindfulness, nem eruditos da filosofia zen. Mas também não éramos ratos a percorrer um labirinto, para chegar ao fim, receber uma recompensa e voltar ao início com a expectativa de que finalmente vamos encontrar a saída.

Talvez não existam saídas definitivas para os complexos labirintos mentais que habitamos. Mas porventura, existem pequenas escapatórias. Nenhum de nós seria consciente disso na altura. Aliás, provavelmente nem serei capaz de o verbalizar satisfatoriamente agora.

 Mas hoje em dia, acredito que essa era a promessa que o surf nos oferecia. Uma escapatória temporária do labirinto. Uma saída em direção a algo que não era nem um produto da mentalidade juvenil, nem uma expectativa depositada em nós por terceiros.

Divagações à parte, o certo é que a dada altura a era do Leão chegou ao fim. Este termo assumiu diferentes formas para cada um. Para alguns, seguiu-se simplesmente uma era (Renault) Kangoo, com mais fins-de-semana na praia e noites de sono relativamente confortáveis, com um colchão na parte de trás da carrinha. Para outros, foi a era Erasmus, sem surf mas não isenta de outras aventuras. E com o passar do tempo, a variação entre a habilidade para o surf de cada um, foi-se tornando mais pronunciada. Alguns iam ficando competentes e outros, apesar dos avanços em fatos e pranchas, pouco ou nada evoluíam. 

Muitas outras coisas mudaram nos vinte anos que passaram desde então. Houve planos que se concretizaram e outros que se desmoronaram. Pessoalmente, ainda não percebi bem o que significa a tal vida adulta. Mas também não posso argumentar contra evidências e devo admitir que alcancei essa etapa. Porém, isto não quer dizer que chegámos ao último capítulo desta história.  Aliás, agora temos novas personagens e algumas delas já manifestam vontade própria para agarrar na prancha.

Quanto aos protagonistas originais, apesar das distâncias geográficas e fronteiras nacionais que nos separam, mantemo-nos em contacto e reunimo-nos na medida do possível. Quando tal acontece, as sessões de surf são mais breves, mas as descrições dos feitos nas ondas continuam igualmente desproporcionais. Tal como a maioria dos surfistas pelo mundo fora, temos um grupo de Whatsapp onde se partilham surf reports, teorias da conspiração e alguma imagem naturista. E como não somos capazes de ser mais originais, o nosso chama-se “Mates” e tem como icon é uma onda de Teahupoo.

 

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