"É IMPORTANTE CULTIVAR UMA CERTA CULTURA 'SURFÍSTICA'"

A SurfTotal falou com Helder Ferreira, responsável da Volcom, sobre a indústria do surf

Helder, como distribuidor de uma marca de surf tão forte como a Volcom, qual o balanço que fazes do surf nacional?
- Depende do período de tempo de que falamos. Seja como for, o balanço dos últimos 10 anos só se pode considerar positivo, pela evolução notória da qualidade dos nossos surfistas de topo, pelo crescimento do número de praticantes, pela afirmação como actividade turística cada vez mais importante, etc.
O Júlio Adler escreveu um interessante artigo sobre o surf português de há uns anos e destacava o Dapin como o único da sua geração de competidores que tinha qualidade para dar trabalho a brasileiros e outros. Nitidamente hoje já não é o caso, há vários surfistas portugueses capazes de o fazer. A geração que vem a seguir, os que têm agora entre 8 e 14 anos é ainda melhor, o nível dos putos mais pequenos é assustador. Por outro lado, o crescimento do número de praticantes despertou o interesse das grandes marcas e dos média tradicionais o que potencia ainda mais a qualidade, o desenvolvimento e crescimento tanto dos praticantes como do mercado. O caso da Nazaré é paradigmático, é uma fabricação pura e dura de uma empresa, a Zon, que deu no que deu. E isto acaba por ser uma bola de neve em que toda a gente ganha.


Portugal já teve vários "booms" do surf. Este último era o que faltava? Há uma consolidação do Surf como estilo de vida e mercado reconhecido pela sociedade portuguesa?
- Este último boom tem coisas muito boas mas também comporta riscos. Demos um salto na evolução sem passar pelos estágios intermédios em termos culturais e competitivos. A cultura de surf em Portugal na minha opinião é relativamente fraca por comparação a França ou EUA, embora melhor que em Espanha. No sentido em que em virtude do hype à volta do surf de competição, que é o que interessa maioritariamente ao público , perde-se um bocado uma visão mais vasta da História, da diferença e de uma certa "pureza" intrínseca ao surf e que o distingue de outras actividades como o ténis ou o futebol. Nota-se isso melhor por exemplo na Califórnia, na Costa Rica, Indonésia ou mesmo em França. E isto é importante para que tenhamos um actividade sustentável no futuro. Não adiantam "booms" sem bases sólidas, dão uma embriaguez de curto prazo até aparecer a next big thing. É importante cultivar uma certa cultura "surfística" para que não seja uma moda temporária. Já vi coisas maiores desaparecerem.

Os últimos acontecimentos na Nazaré trouxeram o surf aos media como nunca antes. O que pode trazer de benéfico ao mundo do surf este tipo de eventos?
- Ao mundo do surf o que traz de benéfico é exposição e capital. De resto, na minha opinião, muito do hype é fabricado, não tem grandes consequências no surf  e passa uma ideia dúbia, o que não significa que seja mau em si mesmo, que não me parece que seja. Para as pessoas da Nazaré ou para surfistas como o António Silva por exemplo é bom e ainda bem.

Há uma repercussão no mercado, com todos estes eventos e acontecimentos em Portugal? WCT's , Primes, Nazaré, etc.
- Obviamente há mas mais no caso do WCT. Desde sempre que nós portugueses somos péssimos a criar heróis, a excepção foi um curto período no Estado Novo em que a propaganda exaltava tudo o que era português e nasciam os heróis mais insuspeitos da História do país. Temos esta idiossincrasia que ou é o Estado a fazer coisas ou não parecemos capazes de as fazer. Dito isto, todos precisamos ídolos e o WCT fornece-os ao público. É claro que ajuda bastante de várias maneiras mas, para mim, a mais importante são os sonhos que criam na cabeça dos mais pequenos. Quererem ser como Kelly, o John John, etc. A História é mudada por indivíduos extraordinários (ver o Kelly) e pode ser que apareça um português que se calhar ainda está no berço ou por nascer.


O que falta na tua perspectiva? Ou o que não faz de todo falta?
Falta a tal cultura que referi antes. Como parte interventora no mercado o que mais noto é uma certa falta de identificação. Em França ou nos EUA um surfista não vai às compras à Zara ou à HM. De todos os desportos que existem só três criaram um mercado de marcas e produtos que nasceram de dentro para fora: o surf, o snowboard e o golfe. Nos três existe uma identidade que não existe em qualquer outro. Em Portugal essa identidade é um pouco coxa, há uma indiferenciação maior do que é normal em países como os que referi.  O que não faz falta nenhuma é a cada vez maior intervenção, burocracia e prepotência de organismos do Estado, como se vê agora no caso da Nazaré e em muitas outras coisas que não cabe aqui explicar.

A massificação do Surf, provoca...?
- Tantas coisas. Mais pessoas a divertirem-se e com menos tendência para a depressão, mais pessoas a poder viver disto, mais tempo de televisão e net bem empregue, etc. Quase tudo coisas boas. Mas também há mais crowds, mais violência, etc.


Vamos agora à Volcom. Surgindo como uma marca super core no final do século 20  em Portugal . Como tem sido a sua evolução durante esta temporada? Podemos dividir por fases?
- A evolução é a que seria natural em qualquer marca bem gerida e bem feita, seja a que a Volcom é, seja uma marca de electrodomésticos. Em Portugal é difícil falar em fases, tem sido uma evolução orgânica e natural de certa maneira interrompida pela crise que vivemos há quatro anos. Já quanto à marca em si mesmo sim, há essencialmente quatro fases diferentes: quando era uma coisa feita pelo gozo dos dois fundadores, 91-93; quando passou a ser levada a sério e como um negócio sério 93-2004; quando esteve cotada na NYSE 2004-2011; e daí para cá desde que foi comprada pela Kering (ex-PPR). De resto faz-se o que se pode para a manter core como sempre foi. Nesse aspecto esta fase não é diferente, a fase mais complicado foi enquanto esteve cotada na NYSE.

Sabemos que há uma nova estratégia da Marca. Queres-nos falar um pouco sobre isso?
- Não há exactamente uma nova estratégia, a ideia da Kering para a Volcom não passa por alterar a estratégia da marca em termos globais. Claro que há a saída do motocross e o fim da editora de música que, como em tudo, tem que ver com o foco da marca no seu core market: surf, skate e snowboard. O que há realmente é capacidade de investimento que permite a criação de novos produtos de que é exemplo a linha de calçado usando sinergias do Grupo. Neste caso específico usando o know how da Puma na fabricação e qualidade e que também pertence ao mesmo Grupo. De qualquer maneira a Kering tem sempre mantido as grandes linhas estratégicas das marcas que adquire focando essencialmente o produto, melhorando-o e aumentando a oferta. Casos da Puma, Gucci, Yves Saint-Laurent, etc.


Com estas novas circunstancias económicas tem havido uma mudança de estratégia das marcas de Surf em termos de posicionamentos dos 3 P's (product, pricing, place)?
- Diria que de uma forma geral sim. Em termos de preços nota-se um posicionamento diferente da maioria e em algumas marcas uma saída de certos mercados chegando a eliminar marcas internas. No caso da Volcom o único "P" importante que muda é o produto via aumento da sua extensão. Para já o calçado. Sobre o que poderá vir a seguir não tenho qualquer informação.


Achas fundamental que isso aconteça? Porquê?
- Nesta altura a gestão é feita com pinças. Vivemos uma situação extraordinária e até certo ponto esquizofrénica porque durante mais de uma década cometeram-se autênticas loucuras tanto da parte das marcas como dos consumidores. Esta é uma fase de ressaca dos excessos em que é preciso repensar tudo, largar o que é mau e focar no que realmente interessa e nos permite sobreviver e, eventualmente, crescer de maneira sustentável no futuro.


Podemos falar de um surfista Volcom ? O perfil ideal na tua opinião?
Prefiro falar de exemplos, sendo que a personalidade é tão ou mais importante que o nível de surf. Destacaria os dois melhores exemplos que conheço: o Gony Zubizarreta e o Alex Botelho. Quem os conhece bem percebe porque os dou como exemplo. Há outros, como o "nosso" João Moreira ou o Nicolau von Rupp. Depois há outros perfis como o Ozzie Wright, mas todos têm em comum uma coisa: uma personalidade fora do comum, seres humanos extraordinários. A mim é o que mais me interessa.

Um surfista Humilde que possa chegar longe?
- Não sei bem se este "humilde" é no sentido que o entendo, mas se é (no sentido de respeito pelos outros, por si próprio e desprendimento) e conhecendo o pai, diria o Afonso Antunes. Pela relação qualidade de surf/idade e pela clássica postura e atitude do pai, o João Antunes. Outros são, obviamente, o João Moreira que tem perante o surf a atitude certa e uma inteligência aguçada, e o Nicolau, provavelmente o melhor free surfer europeu da actualidade e com uma personalidade que admiro.

Queres dizer algo mais?
Divirtam-se. No fim do dia tudo isto é acerca do gozo que nos dá, o resto tem muito pouca importância.

 

 

 

Itens relacionados

Perfil em destaque

Scroll To Top