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A IA e a Nova Cartografia do Surf: A Revolução da Ondulação Inteligente
O Novo Vocabulário das Marcas: Do Instinto ao Algoritmo
Há histórias que não nascem no quebra, mas sim no silêncio antes da onda. É nesse silêncio, o mesmo que antecede um set pesado, o mesmo em que respiramos fundo enquanto olhamos para o horizonte que o surf entra agora numa das maiores metamorfoses da sua história.
A Inteligência Artificial (IA) não chega como moda passageira nem como tecnologia de laboratório. Entra como ondulação de fundo, alimentada por milhares de quilómetros de distância, empurrada por ventos que começaram a soprar muito antes de a maioria dos surfistas suspeitar do que aí vinha. Mas chega agora, cheia, madura e inevitável. E como toda a boa ondulação, não chega sozinha. Traz novas pranchas, novos eventos, novos destinos, uma nova era para as ondas artificiais e, sobretudo, um novo tipo de surfista: o Surfista Aumentado.
O Novo Vocabulário das Marcas: Do Instinto ao Algoritmo
Durante décadas, as marcas escreveram a cultura do surf com intuição, fotografia e rebeldia. Hoje, escrevem-na também com dados, previsões e algoritmos que sabem o que o surfista quer antes de ele próprio o saber.
Uma prancha já não é apenas espuma moldada por mãos sábias; é também um banco de dados vivo. Os shapers digitais utilizam agora machine learning para cruzar o estilo pessoal (o stance, o torque na quilha, a pressão exata do rail) com o design hidrodinâmico. O resultado são shapes autoajustáveis em tempo real ou pranchas criadas por IA, otimizadas para a performance única de cada atleta. Cada aceleração, cada falha, cada manobra incompleta torna-se uma conversa de dados, aprendizagem e evolução contínua.
O próprio marketing passa do instinto para a precisão. A IA amplifica a cultura — ao prever tendências, otimizar a sustentabilidade dos materiais e criar conteúdos que falam diretamente a nichos específicos —, não a substitui. Não se perde alma; ganha-se escala.
O Treino Hiperpersonalizado: A Ciência da Fluidez
A preparação do surfista passa de uma rotina genérica para uma ciência exata. A IA está a redefinir os limites da performance humana, atuando como um treinador 24/7 de precisão molecular.
O futuro do treino é hiperpersonalizado. Graças a wearables e câmaras de alta velocidade, os surfistas recebem análise biomecânica em tempo real. Os algoritmos detetam desvios de postura, corrigem o timing do bottom turn e identificam o momento exato em que a fadiga muscular compromete a técnica. Em terra, simuladores de ondas com física aprimorada permitem que o surfista pratique a mesma manobra mil vezes, ajustando variáveis como a velocidade da onda e a secção do lip. A IA não só regista o histórico digital de performance como, crucialmente, sugere o programa de evolução mais eficiente, baseado em algoritmos comportamentais que entendem a mente do atleta.
O Julgamento do Futuro: Fim da Polémica, Início da Pureza
O surf competitivo sempre viveu entre dois extremos: o sublime e o polémico. Ondas épicas e notas questionáveis. A beleza do mar e os dramas do painel de juízes. Agora, esse equilíbrio muda. Câmaras, drones autónomos e sensores integrados nos equipamentos transformam cada manobra num mapa tridimensional. Ângulos, torque, profundidade no tubo, aceleração, power/speed/flow — tudo é medido. É o fim das notas inacreditáveis, dos heats controversos, dos debates eternos.
A justiça chega, não pela mão humana, mas pela matemática pura do movimento. A IA não julga; fornece métricas objetivas e irrefutáveis aos juízes humanos. Não há favoritismos. Apenas performance pura e a celebração real do atleta que melhor interpretou a onda.
O Paradoxo do Conteúdo: Quando o Real se Torna uma Escolha
Se a IA está a otimizar a performance, ela está a revolucionar a forma como a vemos. A produção de conteúdos entra numa era de abundância e dilema ético.
A Criação Total: Vídeos de surf e fotografias de cortar a respiração podem agora ser totalmente gerados pela IA. Narrativas, replays, análises táticas e até mesmo campanhas publicitárias completas para marcas de surf podem ser produzidas em tempo real, sem a presença de um único humano ou equipamento físico. A IA atua como co-produtor dos media de surf, criando highlights automáticos para redes sociais em segundos, com a narração perfeita e a trilha sonora ideal.
Manipulação e Otimização: A edição de vídeo e fotografia alcança um novo patamar. É possível manipular imagens para corrigir a luz, adicionar spray, "esticar" o tubo ou até inserir um surfista num set que ele nunca surfou. As marcas podem criar o atleta perfeito, na onda perfeita, num dia inexistente.
O Teste do Real: Este fenómeno levanta uma questão crucial: Qual é a diferença entre o real e o artificial? A IA é incrivelmente eficaz a replicar a estética e a física, mas o que diferencia um vídeo real é a imperfeição, o ruído emocional, a prova da coragem humana e o contexto físico. O vídeo real carrega o peso da gravidade e do risco; a imagem de IA carrega apenas a perfeição algorítmica. O desafio para a cultura do surf será valorizar e autenticar o "conteúdo real" num mundo onde o "conteúdo gerado" será indistinguível.
O Destino Inteligente e a Descoberta Aumentada
Há cidades que viveram do surf porque tinham ondas. As próximas vão viver do surf porque sabem ler o oceano com uma precisão nunca antes vista.
Destinos inteligentes cruzam dados meteorológicos, batimetria, historial de tempestades e padrões de visitação para oferecer previsões de swell com 10 a 14 dias de antecedência. Fazem marketing territorial com a mesma precisão com que um shaper lima o rail de uma 5’10. Sabem quando promover, quando proteger (através de modelação costeira preditiva para prevenir a erosão) e quando esperar.
Mais fascinante é o papel da IA na descoberta de novas ondas. Algoritmos de geolocalização e análise de imagens de satélite podem cruzar dados de vento com a forma do fundo do mar para identificar potenciais picos inexplorados em regiões remotas. O futuro da exploração não está apenas em mapas de papel, mas em softwares que geram a próxima grande onda virgem.
Piscinas de Ondas: O Fenómeno Inteligente
Se o oceano é o wild west do surf, as piscinas de ondas são agora o seu laboratório de alta precisão.
O fenómeno das wave pools será exponencialmente amplificado pela IA. Já não se trata apenas de replicar uma onda; trata-se de personalizar a onda.
Os sistemas de geração de ondas serão calibrados por IA para replicar a perfeição de Rincon (Puerto Rico) com 1 metro e meio a 2 metros ou o poder de Teahupo'o (Tahiti) numa versão segura para treino. O surfista poderá encomendar o seu set ideal, transformando cada sessão num treino hiperpersonalizado e acessível. A proliferação destas piscinas será o motor da massificação técnica do surf.
O Surfista Aumentado: A Evolução Invisível
Tudo isto sem perder o mais importante: o instinto, aquele feeling animal que só existe quando o drop é feito no limite da gravidade e a linha certa é decidida em milissegundos. A IA não rouba isso. Apenas o ilumina.
A Conclusão: O Oceano Continua Selvagem
Por mais tecnologia que exista, não há algoritmo capaz de controlar o oceano. Ele continua a ser o árbitro final. Mas agora surfamos com ferramentas que nos permitem interpretar melhor os seus sinais.
A IA devolve ao mar a segurança que o turismo, por vezes, ameaça tirar, através de uma monitorização ambiental e um planeamento urbano resiliente.
E talvez seja esse o ponto fundamental desta nova era: a Inteligência Artificial não vem tirar nada ao surf. Vem devolver-nos algo que sempre desejámos — a possibilidade de evoluir com consciência, segurança e profundidade.
É a nova cartografia do surf. E a próxima grande onda já está a caminho.
(O meu filho Vasco, desde os 7 anos (tem 9 agora) diz que vai ter robôs, na escola de surf dele, a ensinarem a fazer surf! Realidade ou Ficção? Só o tempo o dirá.)

